Fonte: Poder 360 - 5/3/2024

É ultrajante que a direção da Casa Baixa negue acesso à informação e os congressistas pretendam assegurar constitucionalmente a impunidade, escreve Roberto Livianu.

Articulista afirma que blindagem pretendida pelos congressistas seria retirada do mundo jurídico pelo imprescindível controle de constitucionalidade.

roberto livianu foto

A imprensa noticiou recentemente que 139 deputados federais assinaram um pedido de impeachment contra o presidente da República. Mas a Secretaria Geral da Mesa da Câmara dos Deputados tem se recusado sistematicamente a revelar os nomes dos congressistas signatários do pedido, que foi protocolado pela deputada Carla Zambelli e outros bolsonaristas, em decorrência da comparação feita pelo petista entre a reação de Israel em Gaza e o Holocausto dos judeus por Hitler.

O jornal Folha de S.Paulo afirmou que pediu a informação em 22 de fevereiro e que a Casa Baixa orientou a formulação de um pedido via LAI (Lei de Acesso à Informação), cujo prazo de resposta pode ser de, pelo menos, 30 dias.

A própria LAI, porém, estabelece que qualquer interessado em informação que é pública pode solicitá-la “por qualquer meio legítimo” e que cabe ao órgão, de posse dos dados, “autorizar ou conceder o acesso imediato à informação disponível”.

Cabe lembrar que a Constituição Federal delineia em seu artigo 37 o princípio da publicidade como basilar, assim como o é o princípio da moralidade administrativa. Em 2011, o país subscreveu, ao lado de Estados Unidos, Noruega, Grã-Bretanha, África do Sul, Filipinas, México e Indonésia o Pacto dos Governos Abertos, assumindo o compromisso mundial de ser padrão internacional de transparência em matéria de governança.

É ultrajante em relação à cidadania que a direção da Câmara dos Deputados negue acesso a tal informação a veículos de notícia. Isso significa lesar o direito de acesso à informação para a sociedade, pois todos têm o direito de saber quais são os 27% dos deputados federais que entendem que o presidente da República deve ser retirado do poder.

Tanto deputados federais como o presidente da República foram eleitos por voto popular, de maneira republicana e democrática, não sendo razoável nem plausível que sejam escondidas informações de cidadãos e cidadãs. Como afirmou o cientista jurídico e filósofo Norberto Bobbio (1909-2004): “democracia é o exercício do poder público em público”.

Os prazos determinados na Lei de Acesso à Informação dizem respeito à burocracia e à gestão dos pedidos, que podem ser muitos e precisam ter regras. Nesse caso, estamos diante de uma demanda especial dirigida à Câmara, pretendendo-se o esclarecimento da autoria de pedido de impeachment que pode impactar severamente e até traumatizar a vida política do país.

O assunto em questão não é revestido de sigilo, não envolve segurança nacional e, assim, deve ser informado de imediato por questão de lealdade à sociedade. Sonegar tal informação remete-nos a um Brasil das trevas, do coronelismo de triste memória, sem regras de controle, sem accountability, sem compliance, sem ética na política, em que éramos terra sem lei.

O próprio princípio da separação dos Poderes, igualmente garantido constitucionalmente, também acaba sendo impactado por essa decisão, pois ele parte da premissa de que os Poderes são independentes entre si, fiscalizando-se mutuamente.

A opacidade decorrente da atitude apontada prejudica a fiscalização por parte do Executivo. Quais foram os responsáveis pelo pedido? A sociedade, a imprensa e o próprio Executivo têm o direito legítimo de saber para ter condições de exercitar sua fiscalização.

Ao examinar, por outro lado, a cogitação tratada de forma natural no sentido de ver aprovada na Câmara a chamada PEC da blindagem, as coisas começam a ficar mais compreensíveis em relação ao assunto anterior.

Não se dá satisfação à sociedade em relação a um tema afeto à Câmara, pelo qual informações devem ser fornecidas. Agora, na sequência, está em gestação uma mudança constitucional no sentido de imunizar ainda mais os congressistas.

Não foi suficiente a lei 14.230 de 2021 que esmagou a Lei de Improbidade Administrativa, o desbotamento da Lei da Ficha Limpa. É necessário avançar mais no sentido de garantir de forma ainda mais sólida a impunidade, por lei, para que a Polícia Federal, o Ministério Público e o sistema de Justiça jamais alcancem os senhores congressistas, como se fossem seres realmente intocáveis, como se inexistisse na Constituição outro princípio e o mais sagrado de todos: o da isonomi, em que todos são iguais perante a Lei.

Esquecem-se os nobres congressistas, entretanto, que tal vergonhosa blindagem pretendida, obviamente afrontosa à Constituição, seria retirada do mundo jurídico por força do princípio da separação de Poderes, fazendo-se valer o imprescindível controle de constitucionalidade, uma das mais relevantes e históricas funções do Supremo Tribunal Federal.

Roberto Livianu, 55 anos, é procurador de Justiça, atuando na área criminal, e doutor em direito pela USP. Idealizou e preside o Instituto Não Aceito Corrupção. Integra a bancada do Linha Direta com a Justiça, da Rádio Bandeirantes, e a Academia Paulista de Letras Jurídicas. É colunista do jornal O Estado de S. Paulo e da Rádio Justiça, do STF. Escreve para o Poder360 às terças-feiras.