0l. Introdução. O trágico.
02. O conflito agônico entre os poderes.
03. O Estado e política.
04. A sociedade e o Estado.
05. Os mitos e o direito.
0l. Introdução. O trágico. Para sabermos para onde nos dirigimos, temos que compreender o Estado. É feito de contradições. De confrontos. De objeto de desejo de grupos que o buscam conquistar. É a noiva desejada por todos. Pelos partidos políticos. Pelos homens que os dominam. Por todos os que estão envolvidos na luta pelo poder.
O poder é sedutor. Significa a possibilidade de invadir a esfera jurídica do outro, impondo-lhe obrigações ou instituindo deveres. A conquista do poder significa a plena realização dos instintos mais primitivos. Domesticados modernamente. É a busca incessante do predomínio e da subjugação do outro. Está presente em todas as relações sociais. Onde há duas pessoas, há conflito. Onde há conflito há a tentativa de sujeição. Onde há a tentativa de sujeição nasce o trágico.
Uma das versões que busca identificar o trágico busca seu significado no tragos, ou, bode. Seria a representação do sátiro ou a recompensação de vitória nos concursos de teatro. Aristóteles tentou explicar o trágico com a mímesis. Mas, o trágico é o que não pode acontecer, mas acontece; é o perigo; é a inconformidade em evitar o acontecimento; é a desgraça, são verdades inverídicas; é o ambíguo; é o indefinível. Explica Aristóteles que a comédia “tende a representar as pessoas como inferiores aos seres humanos reais, enquanto a tragédia as representa como superiores” (“Poética”, ed. Edipro, 2011, pág. 43).
O trágico é o que supera o inconveniente, o insucesso, o dissabor, a derrota, o destino e, por fim, vence. Ainda que derrotado, supera a vida.
Esse sentir não é só meu. Já foi descrito por diversos autores. O personagem trágico se supera. Encontra a resistência da vida, mas suplanta-a e cresce na contingência.
O trágico-modelo é Édipo. Busca fugir do destino e não consegue. Supera a esfinge, decifra seu segredo, sem identificar o seu. Mata o pai. Casa-se com a mãe, tem filhos-irmãos. Vasa os olhos quando descobre toda sua desgraça trágica.
Não só o destino. Como diz Werner Jaeger (“Paideia – a formação do homem grego”, ed. Martins Fontes, 2010, 329) “o que em Sófocles é trágico é a impossibilidade de evitar a dor”. Sócrates está examinando não apenas Édipo, mas também Antígona que afronta o destino dos irmãos Polinice e Etéocles. Um, por força da guerra, busca retomar o trono; o outro busca mantê-lo. Ambos são presas do destino e morrem. A um, pelo usurpador Creonte, são dadas honras de Estado; a outro, o desprezo e a ausência de sepultura. Antígona se revolta e conflita com o rei. Hegel viu aí o confronto entre a lei do Estado e a lei familiar.
Antígona viu mais, o direito dos deuses em confronto com o direito dos homens. O princípio contra a regra.
Ocorre que os problemas não se superam com o tempo. O trágico está presente na sociedade em todos os instantes. Basta estar vivo. O onírico não nos alivia. A vida do dia a dia é a constante perturbação dos sentidos e da inteligência. A superação da vida é a superação do trágico. Este é o cotidiano. A náusea de Sartre, é o desespero de Kirkegaard.
Buscada um sentido do trágico, analisemos o conflito trágico do agônico.
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O conflito agônico entre os poderes. Aqui o conflito se agudiza, mas prossegue. Não há vencidos nem vencedores. Simplesmente, a sequência dos confrontos. É, em suma, a própria vida. Só que não posso destruir ou matar o adversário. Ele deve subsistir. Quem é o adversário? O Estado? O outro? A sociedade? Se renuncio à vida, morro. Termina o conflito. Se mato o adversário, ocorre o mesmo.
Como diz Viviane Mosé: “O agon é uma luta na qual não há trégua nem fim; como é preciso que a luta perdure, para que as diferentes forças da vida se manifestem, os lutadores não podem chegar a um acordo; o que seria uma trégua, e nenhum deles pode ser aniquilado pelo outro, o que significaria o fim do combate. O combatente não pode nem se tornar um extermínio, nem se resolver por meio de um acordo, ele deve se manter, de modos distintos e diversos, em prol da conquista em si mesma, ou seja, do engrandecimento da vida que é uma luta constante” (Viviane Mosé, “O homem que sabe”, pág. 86).
Montesquieu definiu bem o problema em sua antológica frase: “É uma experiência eterna que todo aquele que detém o poder tendo a abusar dele. É imperioso, pois, que o poder detenha o poder” (“O espírito das leis”). O poder não aceita vácuo. O titular de uma parcela dele tende a invadir o espaço jurídico do outro. Busca assumir as funções do outro.
O que ocorre? As funções estão delimitadas na Constituição Federal. Cada qual deve ater-se ao cumprimento do que lhe cabe. Só que não é isso que sucede. O direito trabalha com palavras vagas e não teoréticas. Como é impossível jurídica e realmente abarcar o todo do mundo fenomênico nas normas jurídicas, opera-se a abstração do fático. A previsão normativa contém palavras que são do mundo natural e de conteúdo social. Logo, imprecisas, de forma a abarcar inúmeras e diversas situações, inalcançáveis pela linguagem.
O jurista trabalha com isso. A comunidade tem uma visão das palavras. O executivo busca assenhorear-se de seus significados para obter resultados; o legislativo as interpreta ou dá um escaninho mental ao juiz. Este, inserido em dada sociedade, traz consigo seus preconceitos, sentimentos, religiosidade, como todo e qualquer ser humano. Com sua carga emotiva é que interpreta os fatos que lhe são trazidos a conhecimento e sobre eles faz incidir a palavra normativa. Evidente que carregará para suas conclusões todo um plexo de afetos que nele estão.
Nem o legislador é técnico, muito menos o administrador e o juiz de forma idêntica. Deveriam ater-se a seus limites de atribuição. Mas, não o fazem, exatamente, porque o direito está no mundo da sociedade. Não há matemática no direito. Os denominados atores que irão aplicar a lei estão subjugados pelos afetos ideológicos que os acometem.
Daí surgem os conflitos. São absolutamente naturais.
Por certo, há uma inconformidade entre os poderes e os que com ele convivem em relação à aplicação da lei. Fala-se em politização do Judiciário ou judicialização da política. Nada disso ocorre.
É o confronto eterno entre os detentores do poder. Sempre houve e não terminará. É que são integrantes do Estado.
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Estado e política. Teria surgido o Estado por criação voluntária ou por imposição do atendimento de necessidades coletivas, como querem Platão e Aristóteles? Adviria da vontade de Deus, como afirmam Agostinho e Aquino? Ou de um pacto, como ensinam Hobbes e Locke? Ou de instrumentos de dominação, no dizer de Marx e Foucault?
Não cabe aqui enfocar o problema, uma vez que já o estudei em “Indagação sobre os limites de ação do Estado” (ed. RT), para onde remeto o leitor.
O que importa notar, para efeito deste trabalho, é que o Estado encampa determinados interesses. Há um pacto inicial, formalizado em documento ou não, que rege a vida dos indivíduos dentro de determinado território. O Estado assume o risco de garantir a existência da sociedade, mantém uma regra geral negativa, em cujo âmbito lhe é vedado ingressar e titulariza uma série de deveres que tem que cumprir.
O behemot descrito por Hobbes (“Leviatã”) lança suas presas para todos os lados, buscando dominar a sociedade. Esta se defende instituindo garantias contra os abusos do poder. Tanto a sociedade como o Estado estão em permanente confronto.
Derrida menciona passagem de Rousseau (“Discours sur l’origine et les fondements de l’inegalité parmi les hommes”) em que desejaria nascer num país onde povo e soberano tivessem o mesmo interesse e tudo tendesse ao bem comum. No entanto, não é essa a aferição que faz do Estado. Esclarece: “Notre point de vue aura donc été choisi en vue de nous donner à voir ce que ces deux vivants, la bête et le souverain, on à voir l’un avec l’autre ou l’un de l’autre, au sujet ou de la part de l’autre, en quoi, d’une certaine manière, dans leur être-avec, quel qu’il soit, ils se rapportent...” (Jacques Derrida, “Séminaire – La bête et le souverain”, ed. Galilée, 2010, pág. 362).
A saber, nunca moraremos num país desejado por Rousseau, mas teremos sempre a perspectiva de Derrida, a saber, um Estado em que o soberano tem feições da besta ou age como tal.
Sob tal perspectiva vale invocar a lição sempre presente de Maquiavel. O governante deve sempre “parecer clemente, fiel, humano, integre, religioso – e sê-lo, mas com a condição de estares com ânimo disposto a, quando necessário, não o seres, de modo que possas e saibas como tornar-se o teu contrário” (“O príncipe”, ed. Martins Fontes, 2004, pág. 85). Se necessário e para manter o poder, deve o governante “agir contra a fé, contra a caridade, contra a humanidade e contra a religião” (idem, ibidem).
Assim é o Estado por seus governantes. Hostil, agressivo, violento e utilizar todas as armas possíveis para manter-se no poder.
É a luta pelo poder. Não há limites. O governante deve trair o povo, se necessário. Imagine no confronto entre os órgãos de exercício do poder. Sabidamente, o poder inadmite vácuo. Logo, se um deixa de exercer as atribuições que lhe compete, o outro invade sua esfera de competências e exerce o que cabe a outro.
É assim a regra das coisas. O poder é o exercício da política. Esta advém da palavra grega pólis que significa cidade. Era o cuidado das coisas da cidade. Inexistiam Estados. Logo, o indivíduo devia preocupar-se com as coisas da cidade. A discussão ocorria no ágora onde todos compareciam para resolver os problemas que a todos afetavam. Como há sempre interesses em conflito, ocorria a discussão e se apontavam soluções. Política, assim, era a participação na vida da polis. Diz Hanna Arendt: “Política diz respeito à coexistência e associação de homens diferentes” (“A promessa da política”, ed. Difel, 2009, pág. 145).
Hanna Arendt afirma que a “política tornou-se, para o filósofo – quando ele não a considera inferior à sua dignidade -, a esfera em que as necessidades elementares da vida humana são tratadas e à qual se aplicam parâmetros filosóficos absolutos” (pág. 82). Acrescenta que “política e governo, ou exercício do poder, foram confundidos e passaram a ser considerados, ambos, como reflexo da corruptibilidade da natureza humana, da mesma forma como o registro dos feitos e sofrimentos dos homens passou a ser visto como reflexo de sua pecaminosidade” (idem, ibidem).
O Estado é uma estrutura ramificada em inúmeros órgãos e instituições. O governo são as pessoas que exercem o poder. Estado é pessoa jurídica. Sem vontade. Quem age em seu nome são os políticos. Estado é um conjunto de instituições permanentes (variando de acordo com a ideologia que o domina). O governo é o conjunto de pessoas que exercem o poder em seu nome.
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A sociedade e o Estado. A sociedade gera o Estado. Por diversas formas. Originariamente, pelo consenso entre os indivíduos. A necessidade faz com que se agrupem para cuidar de interesses que sozinho não logram obter. Indaga-se se teriam feito um pacto. Alguns autores cuidam disso como um dado momento histórico em que os homens teriam abandonado a luta entre si e instituíram um ente para pacificar os conflitos. Os confrontos eram generalizados e violentos. Cansados de tal situação teriam instituído um órgão acima deles e que cuidasse de impedir agressões mútuas. Um pacto. Daí teria surgido o Estado.
Consenso e pacto seriam a origem do Estado. Nunca, no entanto, os homens foram pacíficos. Na origem, “face ao sangue derramado, a única vingança satisfatória é o derramamento do sangue do criminoso” (René Girard, “A violência e o sagrado”, Paz e Terra, 2ª ed., 1998, pág. 27). “A multiplicação das represálias coloca em jogo a própria existência da sociedade” (pág. 27). Surge, pois, a solução do sistema judiciário que dá “a última palavra da vingança” (ob. Cit., pág. 28). Nasce, pois, a racionalização da violência.
O mesmo autor relata a lenda de Job como herói de seu povo (René Girard, “La route antique des hommes pervers”, ed. Grasset, Paris, 1985) conectando-o a Édipo-rei.
A sociedade, então, cria mecanismo de subsistência no interior dos conflitos. O Estado passa a ser o titular da vingança privada. A partir daí passa a cuidar do que se denomina de bem comum.
Quando os homens se estabeleceram, inicialmente, em assembleia, trataram de definir alguns itens que seriam comum a todos. Preservaram a privacidade de cada um, sua intimidade, mas cuidaram de identificar interesses comuns. E ditaram leis. Estas passaram a consolidar quais os objetivos daquela coletividade. É o que Rousseau chama de volonté du peuple (“Du contrat social”, ed. Champion classiques, 2010, Paris, pág. 191).
Os homens e mulheres reunidos cuidam do bem estar geral. Afirma que “le bien commun se montre partourt avec évidence, et non demande que du bons sens pour être aperçu” (ob.cit., pág. 241). Mas, ele mesmo percebe que a vontade geral passa a ser corrompida. E se torna muette. Embora pareça claro o que seja a vontade geral percebida por todos, ela passa a ser objeto de disputas, de debates e assim, ela é destorcida.
Vê-se que, embora o bem comum seja dedutível e evidente ele é captado pelos interesses menores de grupos e manipulado. Instaura-se, então, disputas por sua definição. O conflito se reflete na edição das leis. Estas como traduzem, em princípio, a vontade da sociedade, é deturpada pela ação e mediação de grupos.
A luta pelo exercício do poder é eterna. Montesquieu em sua famosa frase disse que é uma experiência eterna que todo aquele que detém o poder tende a abusar dele. Logo, impõe-se que o poder detenha o poder. Essa luta é eterna. Surgem mecanismos de controle, os órgãos de exercício do poder devem se conter. Mas, há exageros de parte a parte. Assim, a definição do bem comum fica sob o controle daquele que detém o poder. Depende da ideologia do grupo.
Montesquieu define as leis como “rapports nécessaires qui dérivent de la nature des choses” (“De l’esprit des lois”, ed. Flammarion, 1979, pág. 123). É o sentido mais extenso. Em seguida garante que a lei é a razão humana (pág. 128). Daí porque o autor não examina as leis, mas o espírito das leis. Daí a importância de indagar sobre as diversas relações que as leis podem ter com diversas coisas. Assim, as leis estão relacionadas com a sociedade, mas também com o clima, com o local em que vigoram, a liberdade, o regime estabelecido. A lei está relacionada com tudo.
A sociedade é parte dela. Logo, a sociedade pode mudar o Estado. Acompanha o governante e o mantém preso a determinados dados. Estado e sociedade estão umbilicalmente ligados. Mas, não com o governante. Este muda.
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Os mitos e o direito. O mito não uma mentira nem uma inverdade. O mito é a verdade que um povo cria para explicar os eventos do mundo. Mircea Eliade diz que “le mythe est une réalité culturelle extrêmement complexe, qui peut être abordée et interprétée dans des perspectives multiples et complémentaires” (“Aspects Du mythe”, ed. Gallimard, 1963, pág. 16). O mito conta uma história sagrada. “Il relate um événement qui a eu lieu dans le temps primordial, le temps fabuleux des ‘commencements’” (idem, ibidem). As pessoas são seres sobrenaturais.
Como história sagrada é história verdadeira.
O direito consagra verdades inabaláveis. Todos são convencidos, desde o nascimento até à morte e especialmente quando resolvemos estudar direito que há verdades incontroversas. É como se afirmar a infalibilidade do Papa definida no Concílio Vaticano I, em 1869. O direito garante certas aporias. Por exemplo – todos são obrigados a conhecer a lei. Decisão judicial se cumpre não se discute. Verdade formal e real. A condenação e prisão implica recuperação do preso. Quem cala consente
Tais mitos não proveem do mundo fantástico, mas servem para controle das expectativas. As parêmias latinas, por exemplo – suum cuique tribuere, neminem laedere – pouco querem dizer. Dar a cada um o que é seu. O que é meu? Não prejudicar ninguém. Como? O que significa?
Os homens criam determinadas expressões que passam a ser intocáveis, por exemplo, o rótulo direitos humanos. Tudo que se faz é em homenagem a uma expressão imprecisa e sem conteúdo exato.
- Regis Fernandes de Oliveira - (Professor Titular Aposentado de Direito Financeiro da USP)