Sinopse:
0l. O direito dos deuses. A consolidação positiva do Direito Romano.
02. Direito natural.
03. Direito positivo.
04. O direito realista.
05. O direito polifônico.
06. A sociedade conflituosa. Os três juízes de OST. O psicopompo.
07. Atonia e acronia.
08. A dramática situação social e política.
09. As leis. O papel do juiz. 10. Conclusões.
1. O direito dos deuses. A consolidação positiva do Direito Romano. Fico incomodado com os limites estreitos em que se insiste por o direito. Brecht já disse que todos reclamam das águas que extravasam o canal do rio e causa tanto dano com as enchentes, mas ninguém diz que suas margens são estreitas.
Na Antiguidade Clássica buscava-se o direito divino. Antígona enfrenta o rei Creonte: “Jamais pensei que o direito dos homens pudesse revogar o direito dos deuses” ao pretender enterrar seu irmão Polinice.
Os deuses não podiam errar. Zeus punia as infrações com seus raios ou sancionava Sísifo ou Prometeu com penas duríssimas e eternas.
As pendências se resolviam através dos ordálios ou juízos de deus. Tudo era decidido pela fortuna.
Em Roma as coisas mudam, porque o direito passa a ser formal. Como nos informa Savigny acreditava-se na sorte para criar um direito diferente, mas “cette supposition tombe devant ce fait incontestable, que partout où l’existence d’un droit se révèle à intelligence humaine” (M.F.C. De Savigny, “Traité de droit romain”, tomo I, Librairie de Firmin Didot Frères, 1885, Paris, pág. 14). Sustenta o autor que o direito nasce da consciência dos homens. Mas, o direito que vem à consciência dos homens não é um composto de regras abstratas (ob. Cit., pág. 16).
As normas proveem, então, da fonte básica que é o Estado. Este constitui o direito escrito que será consolidado, em Roma, no ano de 533 d. C., com o advento do Corpus Juris Civilis de Justiniano. Savigny ressalta as partes integrantes do Corpus, como o direito escrito (ob. Cit., pág. 65).
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O direito natural. Invocava-se o direito natural. Há distinção entre o que é por natureza e o que é por convenção. O direito natural está em toda parte e prescreve ações que sobre elas tenha o sujeito, independente do fato de parecerem boas ou más (Norberto Bobbio, “O positivismo jurídico”, ed. Ícone, 1999, pág. 17). Seria ditame da justa razão e comandado por Deus, como autor da natureza. Seriam os direitos do ser humano enquanto tal.
O direito natural era o do mais forte e outorgava a qualquer um a morte violenta. A vingança era a regra, mas é um processo interminável. Diz René Girard: “Não há, no sistema penal, nenhum princípio de justiça realmente diferente do princípio da vingança” (“A violência e o sagrado”, Paz e Terra, 1998, pág. 28). O primitivo transforma-se em civilizado através do Judiciário que assume o papel de vingador da injustiça e tem o mesmo efeito que o sacrifício imolador.
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O direito positivo. Nasce em contraponto ao direito dos deuses, o conceito de norma que identifica o direito positivo. Surgem os códigos que consubstanciam todo um rol de condutas numa só garrafa de gargalo estreito. O direito adota a forma de lei. É imperativo. Resulta da natureza do proibido. Em tal posição, a lei é a única fonte de qualificação, a norma é imperativa e definida como coativa. Como conjunto legal, forma-se o ordenamento normativo.
Desenha-se o direito como uma pirâmide que busca validade na Constituição e esta fornece completude e conexão ao sistema. A norma é sagrada e transcendental. A racionalização completa vem com as modernas Constituições. Como diz François Ost (“Revista sobre enseñanza del derecho”, año 4, número 8, 2007, págs. 101/130), tal modelo atende a quatro focos: a) o monismo jurídico, leis códigos e sistematização, b) soberania estatal, pirâmide normativa; c) racionalidade dedutiva e linear, regras gerais deduzidas de princípios e d) concepção de tempo com futuro controlado.
O direito é positivado pelo legislador que detém o monopólio da instituição da norma. O juiz, então, tem seu limite de conhecimento gizado pela norma.
Este direito provém de representações canônicas e ligadas a um autor supremo: Licurgo, Sólon, Justiniano e Napoleão.
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O direito realista. O direito funcionando como engenharia social. É o que se conecta com realismo norte americano. Assim, o direito não é um dever ser, mas “un fenómeno fáctico complejo formado por los comportamientos de las autoridades judiciales” (Ost, ob. Cit., pág. 110). As regras jurídicas são meras possibilidades. Holmes é seu grande representante.
Neste campo, a efetividade é a condição primeira para a validade. O normativo se exaure em mera coleção de normas de previsão possível. Aí é que levam os direitos fundamentais a sério, como o faz Dworkin. Em contrário ao monismo, há o pluralismo, terminando com o absolutismo binário permitido/proibido, válido/inválido.
A ideia do direito vem delineada como aspiração de justiça.
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O direito polifônico. A polifonia vem do conceito musical que se desenvolveu na Idade Média e nasce por oposição ao canto gregoriano. Era linguagem dinâmica e mutável, flutuante. Seria para expressar a percepção carnavalesca do mundo. Na literatura, Bakhtin a analisa na obra de Dostoiévski (Mikhail Bakhtin, “Problemas da poética de Dostoiévski”, ed. Forense Universitária, Rio de Janeiro, 5ª ed., 2013). A psicanálise busca o modelo musical para explicar o inconsciente.
Diz Bakhtin “A multiplicidade de vozes e consciências independentes e imiscíveis e a autêntica polifonia de vozes plenivalentes constituem, de fato, a peculiaridade fundamental dos romances de Dostoievski” (ob. Cit., pág. 4). O que é importante, na análise literária é a multiplicidade de consciências equipolentes “e seus mundos que aqui se combinam numa unidade de acontecimento, mantendo a sua imiscibilidade” (ob. Cit., pág. 5).
Significa que Dostoiévski foge do padrão. No direito, como encarar as coisas? O direito não está na norma. Ele é captado por ela, no meio dos fenômenos. O mundo empírico é múltiplo. Ao trazer para a norma o fenômeno encontrado, traz junto uma multiplicidade intensa de valores, objeções, comportamentos, sentimentos, etc. É multisignificativo. Há um turbilhão de significados, mas permanece imiscível.
O que rotulo direito polifônico é o direito de mil faces. É o que capta não o fato, mas o fenômeno e não o reduz a uma norma, nem a mera interpretação. Busca captar todos seus sentidos, toda sua complexidade. É que a sociedade não está parada. Ela se movimenta a todo instante e a todo instante aparecem situações novas.
Agora, a sociedade do homem na lua, o que traz indagações de toda ordem sobre propriedade, posse, busca de soluções extraterrestres. A clonagem humana, a comunicação eletrônica, as fake news, as invasões de hackers, a inseminação artificial, a identidade transfigurada por transexuais, transformações de sexo em gênero, representação política artificial, politização do judiciário, esvaziamento do princípio da legalidade, interferência nos poderes do Estado, tudo muito rápido.
O direito não pode mais se limitar à estrutura formal, nem ficar no sentimento político do juiz.
Os conceitos normativos não dão mais resposta à complexidade social. A globalização da economia, a tributação que perde sua territorialidade, as necessidades do Estado que se multiplicam. Tudo demanda uma nova compreensão do direito.
Modernamente assistimos a outra reação da sociedade. O procedimento judicial, no direito positivo, é um acordo prévio sobre a forma mais justa de saber tudo (anglo saxão) ou de considerar provas aceitas. O direito polifônico não se contenta com qualquer das saídas. Ao contrário, busca o conhecimento que, como diz Foucault, “é sempre uma certa relação estratégica em que o homem se encontra situado. É essa relação estratégica que vai definir o efeito de conhecimento e por isso seria totalmente contraditório imaginar um conhecimento que não fosse em sua natureza obrigatoriamente parcial, oblíquo, perspectivo” (Michel Foucault, “A verdade e as formas jurídicas”, ed. PUC, Nau editora, 2003, pág. 25).
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A sociedade conflituosa. Os problemas que se enfrentam hoje: As drogas, a sexualidade, a insegurança urbana, a busca de identidade. Como diz Garapon “na sociedade democrática, a pertença social tornou-se, com efeito, uma questão essencial” (“O guardador de promessas – justiça e democracia”, ed. Instituto Piaget, Lisboa, 1996, pág. 128).
Acrescenta Garapon que “uma sociedade é apenas um sistema organizado de diferenças; são as diferenças que dão aos indivíduos a sua identidade, e que lhes permitem situar-se uns relativamente aos outros. Os excluídos são-no desde logo e antes de todo este sistema de diferenças, eles são órgãos de toda a filiação social e, portanto de toda a representação. Estão privados de toda a participação numa ação coletiva, do direito de ter direitos e do benefício de uma qualquer solidariedade social” (ob. Cit., pág. 128).
O direito sobrevive entre tantas contradições. Por maior complexidade que tenha a sociedade em seus diversos nuances, as coisas não se misturam. São imiscíveis.
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Os três juízes de Ost.O psicopompo. Ost prevê três tipos de juízes para a aplicação do direito: o primeiro é de Júpiter, formal e normativo; o segundo, de Hércules, realista e constitui o juiz fonte única de direito e o terceiro é o de Hermes tem estrutura de rede, que se traduz em infinitas informações e ao mesmo tempo dificilmente sintonizadas.
O psicopompo vem do grego e significa o guia da alma. É um ente cuja função é guiar um ser humano entre dois ou mais eventos significantes. Cabia-lhe conduzir a alma dos mortos.
O psicopompo foi muito estudado por Jung que entendia como um intermediário entre o consciente e o inconsciente.
No direito podemos ter referida figura como o intelectual que logra trazer o transcendente ao imanente; aquele que consegue ligar o conhecimento do espírito do direito com a realidade social. É ligar o que é com o que deve ser. É fazer a ligação dos dois mundos – realidade e normativo.
No mundo cambiável e instável de hoje, há que se fazer a conexão entre diversas comunicações, diversos fenômenos, diversas compreensões de análise. O juiz não pode estar atento apenas ao fato que lhe é trazido ao conhecimento. Tem que analisá-lo em conjunto com todos os fatores sociais, psicológicos, históricos para poder bem compreender o que está sendo submetido a seu julgamento.
É o saber complexo de Morin (Edgar) aplicável ao mundo líquido de Baumann. A compreensão do mundo diversificado como o nosso, complexo, de múltiplos fatores e fatos, de situações as mais problemáticas, de desencontros,
Em situações de decisão sobre um comportamento administrativo, deve levar em conta os recursos ali envolvidos, o comportamento do agente administrativo, qual a compreensão para a ação, a forma da ação, seu momento, tudo é importante. Não lhe basta analisar simplesmente o fato, enquadrá-lo na norma e dar a decisão.
Tem que estar atento, ademais, às consequências de sua decisão, tal como determina a LIDB. Explicitar seu convencimento e analisar o que daí resultará. Não se pode mais colocar na cômoda posição de simplesmente emitir o comando individual sem estudar todo o fenômeno em seu conjunto com a realidade social.
Em tal passo, como adverte Garapon, o juiz assume papel de tutelarização das pessoas frágeis (ob. Cit., pág. 158). Afirma: “o juiz deve substituir-se à autoridade vacilante para autorizar uma intervenção nos assuntos privados de um cidadão” (ob. Cit., pág. 159).
A justiça deixa de ser meramente ritual ou de fazer o papel de uma justiça burocrática. Afirma Garapon: “A justiça informal, já o sabemos, é a suavização das regras de procedimento pelos próprios juízes que se caracteriza pela confusão dos lugares, dos momentos e dos atores” (ob. Cit., pág. 245).
Vemos, pois, que a prolixidade da sociedade não subsiste sem a normatividade. Essa é que dá coesão ao todo, dentro da perplexidade fática. Daí a necessidade de regramento social, de vez que a sociedade começa com a repressão, como já disseram Freud e Marcuse.
Dentro de tal complexidade é que se necessita da ética.
Devemos institucionalizar a ética? O juiz não é apenas um ser racional. É movido por sentimentos. Mas, como proceder diante da lei? Esta é mera forma. Busca captar o todo social, mas não logra. Tenta ser abstrata para alcançar o maior número de situações, mas não consegue atingir o todo. Se o juiz não logra atingir a finalidade social com sua decisão ele frustra as expectativas. Demasiada lealdade à norma torna o juiz colaborador de juízes injustos. Bem já se viu isso com Hitler, Franco, Mussolini e no tempo do apartheid, na África do Sul que manteve Mandela preso por longos anos. O juiz passa a ser colaborador. Por isso é que ao pode deixar de ter ética judicial, a saber, é valor que se junta à sua decisão.
Finaliza Garapon: “Uma justiça moderna, para ser eficaz e, assim, respeitada, deve conhecer muito bem a matéria que deve julgar. Tratando- de regulações cada vez mais complexas pondo em jogo interesses – tanto políticos como econômicos – importantes, já não basta conhecer o direito, é necessário compenetrar-se do que há à volta, da técnica e da cultura própria da matéria” (ob. Cit., págs. 279/280).
Evidente que a justiça não pode regular todos os problemas e dizer a verdade científica, história, definir o bem político e responsabilizar-se pelo bem estar de todas as pessoas. Desnecessário multiplicar os direitos formais. As pessoas não aceitam ser tratadas como excluídas.
O juiz está aí para lembrar às pessoas que devem ser tratadas como dignidade, como seres humanos, com igualdade, seriedade e como seres humanos. Como disse Bobbio, a era da declaração dos direitos já se venceu. Resta cumpri-los e garantir seu exercício. É o papel dos juízes.
- 1 - Atonia e acromia. O mundo foi habituado a pensar no espaço e no tempo. O espaço fixa a competência da jurisdição; o tempo os prazos que devem ser obedecidos. Modernamente, vivemos num mundo de ausência de espaço e ausência do tempo. O mundo virtual cria uma nova realidade – simulacro (Bachelart). Vivemos em que mundo? Real ou virtual?
O juiz polifônico vive profundamente a realidade em que está. Sabe das desigualdades sociais em que vive. Não tem cultura somente normativa. Lê os clássicos. Insere-se no conhecimento de sua época. Quando decide não o faz apenas pela óptica normativa. Sai dela. Vai para a realidade.
Não pode o juiz decidir conhecendo apenas a norma. Esta é apenas um dos dados do fenômeno jurídico. Tem o magistrado que estar no seu tempo e viver a sociedade de seu mundo. Para tanto, tem que estar informado do que se passa no cosmos, em cultura que abranja o maior plexo de conhecimento possível. É sentir como vive o povo (a norma é dirigida para cumprimento de todos e não para parte restrita da sociedade).
O juiz ora estudado não pode desconhecer a norma. Esta é mero escaninho para que os termos utilizados pela lei sejam por ele interpretados. Sobre a linguagem que capta os fenômenos sociais é que o juiz faz recair seu conhecimento.
Sabidamente a norma é instituída por determinado grupo de dominação. Dependendo da ideologia reinante em determinando momento histórico as s normas são produzidas. Em tese, devem resolver problemas vividos pela população. No entanto, nem sempre é assim. Os interesses que subjazem na sociedade são tomados por determinados grupos políticos. Apropriam-se deles e buscam inseri-los em normas jurídicas. Por ali se veem interesses religiosos, ambientais, urbanísticos, tributários, financeiros, de gênero, familiares, etc., que nem sempre se identificam com a sociedade em seu todo, mas com grupos particulares
Isso torna o direito positivo em um todo movediço. Instabilidades passam a dominar o ambiente jurídico. Essa a origem do que se rotula de politização do Judiciário ou judicialização da política. As atribuições de confundem. Fruto do momento histórico que se vive. Os juízes percebem o sentimento da sociedade que se volta contra os políticos e passam a imputar a eles os males de que padece o país. As instituições políticas reagem e, com o endurecimento da interpretação dos juízes que ultrapassam requisitos procedimentais e buscam alcançar o justo, tentam limitar a responsabilizar os juízes.
Eles não podem, dizem, pretender administrar cidades, Estados e o país. Muito menos o Ministério Público. As atribuições entram em choque. Colidem.
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A dramática situação social e política. Tal situação é fruto dos conflitos globalizantes. Estados buscam colocar seus interesses sobre os de outros. Migrantes buscam países diferentes fugindo de sua origem, por fome, guerra ou medo. Estados inteiros são dizimados. Surgem guerrilhas e, mais modernamente, “Estados” guerreiros como o ISIS, o Estado Islâmico, que desconhecem os princípios e regras de direito internacional e agem como guerrilheiros ou como bando de bárbaros, revivendo passado de terror. Bandos terroristas desprovidos de qualquer ideal arrasam populações e as submetem a seus desejos, violentando homens e mulheres.
A África vê-se ignorada pela maioria dos países. Só percebem que existem quando buscam explorá-los. Genocídios ocorrem sem que os países de molestem com isso. Ignoram o problema, mesmo porque não há interesse econômico.
As diferenças sociais internas dos países preparam ebulição que irá ocorrer. A população se sente abandonada, arredada dos bens da vida. Sem perspectiva de vida saudável. Filhos abandonados, desesperançados de qualquer futuro. Vivendo em completo abandono do Estado. Vivendo à margem da sociedade. Em situação de promiscuidade. Sem aparelhos urbanísticos. Sem escola, educação, hospitais, creches, etc. Situação caótica para qualquer ser humano.
Os agentes políticos buscam assenhorear-se dos bens públicos. Dominam a cena política para enriquecer seus cofres. Enriquecem-se às custas de corrupção e de toda sorte de desmandos.
A tudo isso o juiz assiste. Percebe que há descompasso entre o direito positivo e a realidade social. As situações não se encaixam. AS normas jurídicas não logram absorver ou dar soluções a todos os problemas sociais e políticos.
O juiz tenta, então, atropelar a norma, superar sua ausência, as lacunas normativas e busca solucionar os problemas, mesmo sem legislação a respeito. Problemas de comunicação eletrônica, fake news, agressões ambientais, minorias, tais como indígenas e população LGTB, linguagens diversas, negros e toda sorte de abandonados.
Como exigir que o juiz se atenha ao texto da lei? Ouvi isso milhares de vezes: o juiz é um técnico que tem que aplicar a Constituição e as leis. Não me parece ser assim, O juiz é ser pulsante de sentimentos e tem que olhar para a sociedade antes de decidir. Não pode criar um direito seu. Mas, dentro da margem interpretativa e por força da vaguedad das palavras, deve retirar a venda da deusa Thêmis, que a torna cega, para observar, analisar e decidir voltado para a sociedade.
Os pratos da justiça estão desequilibrados. Tortos. De um lado 1% riquíssimos e donos de toda produção de alguns países. De outro, tirante a classe média, um bando de farrapos, morando em favelas, arrastados por milícias, traficantes e desordeiros de toda ordem. Cresce um estado paralelo. O PCC já domina os presídios e boa parte das favelas. Em “o direito de Pasárgada” o jusfilósofo português Boaventura Santos bem retratou os dois direitos.
Como age o juiz diante de tal anomia? Ele cria a norma do nada ou procura aplicar as existentes adaptando-a à realidade social. Criar não pode, porque não lhe cabe legislar, mas deve retratar em suas decisões os sentimentos mais puros presentes na coletividade.
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As leis. O papel do juiz. No mundo havia apenas animais. Os deuses reclamaram a Zeus que não havia quem os adorasse. Zeus envia Prometeu para distribuir todos os bens aos animais (Thomas Bulfinch, “O livro da mitologia”, Martin-Claret, 2013, pág. 21). Este pede a Epimeteu, seu irmão que cumprisse a obrigação divina. Fê-lo, mas se esqueceu dos homens. Prometeu, então, foi ao Olimpo e roubou a centelha divina e a entregou aos homens. Zeus irá punir os homens enviando Pandora para distribuir os males. Os homens, então, começaram a praticar injustiças. Zeus, preocupado com o desaparecimento da raça humana, enviou Hermes para distribuir justiça e pudor (Platão, “Protágoras”, 322 d).
Zeus determina: “Aquele que não conseguir partilhar pudor e justiça deverá morrer, por ser uma pestilência para a cidade” (verso 322 d). Observação fundamental: Não é a lei que Zeus oferece, mas uma relação com ela (François Ost, “Contar a lei – as fontes do imaginário jurídico”, ed. Unisinos, 2007, pág. 64). A segunda observação é a de que todos participem da formação da vontade comum (Ost, ob. Cit., pág. 65).
Percebe-se, então, que há um dever cívico de participação. É o que se denomina política (participação na polis). Mas, o mais importante é a adequação da norma abstrata ao mundo das realidades. Diz Anatole France: “As leis são feitas pelos ricos e poderosos para a conservação do poder e da riqueza” (“Le lys rouge”, ed. Gallimard, XXII, pág. 480).
Daí o papel imprescindível e essencial dos juízes. As leis são feitas de forma açodada e fornecem apenas um escaninho formal. Cabe ao intérprete dar-lhe vida. As normas retratam a dominação que se perpetua dentro das sociedades. Grupos que assumem o comando de partidos e estes dos Municípios, Estados e União. Ao se assenhorearem do poder buscam perpetuar-se e fazem de tudo para que o logrem.
O juiz que apenas lê a lei não é juiz. Deve buscar interpretá-la. Antes de mais nada deve situá-la no contexto social. Em segundo lugar, desvendar a deusa da justiça que nada vê. Olhar a sociedade é papel fundamental do juiz. Aplicar o texto é simples. O difícil é utilizar seu raciocínio para buscar uma solução justa. Distingue-se, então, o legal do justo. Diz Aristóteles que “justo será quem observa a lei e respeita a igualdade. Disposição justa é, então, por um lado a observância da lei e o respeito pela igualdade; disposição injusta, por outro, é a transgressão da lei e o desrespeito pela igualdade” (Aristóteles, “Ética a Nicômaco”, Livro V, 1129 b).
A primeira forma de injustiça é a transgressão à lei (ob. Cit., 1130 10). O igual é o meio termo entre extremos (ob. Cit., 1132, 24) e o juiz quer ser “como que a justiça encarnada” (1132 25) e “o juiz é capaz de restabelecer a igualdade”. Diz Aristóteles, “ato justo, em sentido estrito, consiste na correção de um determinado ato injusto praticado” (ob. Cit., 1134, 10).
Aqui o filósofo arremata: a equidade é forma superior de justiça. “A justiça e a equidade são, pois, o mesmo” (ob. Cit., 1137, 10). “O que põe aqui problemas é o fato de a equidade ser justa, não de acordo com a lei, mas na medida em que tem uma função retificadora da justiça legal” (1137, 10).
O juiz utiliza a régua de Lesbos, ou seja, que se amoldava a qualquer circunstância.
A partir daí, pode-se perguntar: O juiz pode fazer o que quiser? Claro que não. Ele tem os limites de sua competência. Depois, sua formação intelectual. Deve ter sensibilidade ao analisar o caso concreto, amoldando-o à realidade em que vive. Utilizar sabedoria prática, prudência, temperança e deliberar bem objetivando atingir o melhor dos bens alcançáveis – o bem geral, captar a vontade geral da comunidade.
A prudência significa a memória necessária da experiência adquirida; o senso interior, a docilidade em relação a sábios, pronta atenção às conjecturas, previsão das contingências, precaução. Deve ter, como diz Aristóteles, um terceiro olho (capítulo VI, 1136, 15).
O juiz, portanto, deve conhecer a lei, mas evitar cair em seus percalços.
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Conclusões.
Qual o comportamento de um juiz embutido em tal sociedade, tendo que decidir para desequilíbrios tão grandes?
As sociedades mundial e brasileira são fragmentárias. O mundo se reparte em polos ideológicos e divide-se em países ricos e pobres. Cercados pela dominação. As sociedades estão divididas. De um lado uma minoria rica e, de outro, uma imensa maioria pobre. Muitos abaixo do limite de pobreza. No meio, uma classe média sufocada e carente.
Caso o juiz se atenha à norma, sem compreender o que se passa na realidade, será um juiz menor. Se não tiver cultura polivalente e múltipla, apenas verá os casos submetidos a sua análise por ótica parcial. Não enxerga todos os ângulos do problema que deve decidir.
Hoje, os problemas rompem com tempo e espaço, a linguagem é absolutamente diferente do que era no passado. A informática encurtou o tempo e propiciou novas aberturas. Os meios eletrônicos de comunicação têm nova linguagem. O papel deixou de ser importante. A virtualidade é a nova senhora da realidade. A família tem novo significado. O gênero ultrapassou o sexo. Os confrontos tomaram novas formas e conteúdo. A pobreza atinge níveis nunca vistos. A desigualdade persiste a desafiar as mais finas sensibilidades. As ideologias entram em crise.
Enfim, estamos defronte um admirável mundo novo. Em consequência, o juiz não pode ficar retido nos mesmos escaninhos mentais do passado. Deve libertar-se de conhecimentos preconcebidos. O pré-conceito se desvaloriza. O mundo muda permanentemente. Heráclito tinha razão. E o juiz não pode banhar-se nas mesmas águas.
Daí o que se rotula juiz polifônico, ou seja, aquele que abandona tradições, sem perdê-las de vista, que respeita o clássico, mas de forma crítica, que desvenda a deusa dos olhos vendados, que olha a realidade com olhos de intérprete.
Para tanto, somente a compreensão do mundo e o dedicar-se ao fenômeno analisando-o de seus perfis é que pode dar solução adequada aos inúmeros litígios que lhe são postos a julgamento.
Somente um novo sentido de subjetivismo conceitual é que poderá ver todas as nuances do que lhe é posto a seu julgamento.
Uma cultura abrangente, sólida e consistente dará ao magistrado todas as perspectivas do fenômeno colocado à sua apreciação.
Este é o juiz do novo tempo.
- Regis Fernandes de Oliveira - (Professor Titular Aposentado de Direito Financeiro da USP)