01. O povo na Constituição.ex regis 019de
02. A concepção marxista.
03. A massa e sua psicologia.
04. O conhecimento político popular.
05. A organização social primitiva.
06. A soberania popular ou divina.
07. Quem é o povo a que alude o parágrafo único do art. 1º da Constituição?
08. O paradoxo do governo.
09. Algumas assertivas.
10. A massa amorfa (ralé).
11. Há um conceito positivo de povo?
12. O que não é povo. Riqueza e intelecto. Extrema pobreza. A pobreza como privação de capacidades.
13. Enfim, o que é o povo na Constituição Federal? O voto.
14. O exercício do poder. Soberania popular. Representatividade. Poder constituinte e constituído.
15. Conclusões.

1. O povo na Constituição. Nunca a expressão povo foi analisada pelos juristas como um fenômeno incidente de normas. Sempre se passa ao largo dela, porque é o tipo de indagação jurídica que incomoda. Dispõe o parágrafo único do art. 1º da Constituição Federal que “todo poder emana do povo, que o exerce por meio de representantes eleitos diretamente, nos termos desta constituição”.

Nosso sistema de governo é a democracia representativa. O titular do poder (povo) não o exerce diretamente, salvo através do plebiscito (inciso I do art. 14 da Constituição), do referendo (inciso II do mesmo dispositivo) e da iniciativa popular (inciso III). São formas de exercício do poder soberano de seu titular. Analisaremos tais instrumentos mais adiante.

Por ora, é suficiente dizermos que na forma democrática de exercício de poder, seu titular é o povo. Mas, o que é o povo?

Diz Celso Ribeiro Bastos que o povo “é o elemento humano do Estado” (“Comentários à Constituição do Brasil”, ed. Saraiva, 1º volume, capítulo XXIII, pág. 123). No Brasil, o termo cidadão é destinado aos que estejam em dia com seus direitos políticos. A saber, que podem votar e ser votados. No mais, são indivíduos.

O art. 12 da Constituição Federal especifica quem são os brasileiros natos (inciso I) e os naturalizados (inciso II).

O objetivo do presente texto, no entanto, não é realizar uma análise estritamente jurídica do problema, mas analisar o que é o povo dentro de perspectiva sociológica e filosófica.

O povo pode ser a base de sustentação e fundamento da democracia e detém a titularidade da soberania ou é apenas um amontoado que serve de massa de manobra das elites políticas.

A existência dessa quantidade só existe em vésperas de eleição. Normalmente, vive absolutamente abandonada dos benefícios públicos. Saúde, educação, saneamento básico e outros deveres da Administração são esquecidos durante o período de gestão. Ressurge sua importância quanto os políticos buscam captar votos.

É uma palavra bastante utilizada em discursos. A todo instante se alude ao povo (não população) como instrumento de manobra. Massa dócil aos olhos dos dominadores é intensamente manipulada por todos, sem exceção. Ainda que inconscientemente os que buscam participação política eletiva valem-se de rótulos para captação de simpatia, apoio e consenso nas urnas.

No dia seguinte à apuração os eleitores voltam a ser povo. A saber, já não valem como seres humanos, mas como meros números obtidos nas urnas.

Verifiquemos algumas concepções.

  1. A concepção marxista. O povo não se confunde com a massa. Nem com o lumpemproletariado marxista. É a noção do proletariado em farrapos, trapos. Marx introduziu a noção na “Ideologia alemã” (edição Martins Fontes, 2008, pág. 15). Afirma que “os plebeus, situados entre os homens livres e os escravos, nunca chegaram a elevar-se acima da condição de Lumpenproletariat” (idem, ibidem).

Em verdade a sociedade se divide em elite (burguesia), classe média e proletariado e entre eles se trava eterna luta de classes. Alguns detêm os meios de produção; outros vivem como intermediários entre o Estado e a massa e aqueles que possuem a força de trabalho vendem-na para subsistir. Na concepção marxista sociedade civil “compreende o conjunto das relações materiais dos indivíduos dentro de um estágio determinado de desenvolvimento das forças produtivas” (ob. Cit., pág. 33).

Ocorre que sendo o Estado, ainda na visão marxista, apenas um instrumento de dominação da burguesia ocorre a manipulação dos meios de produção para que o proletariado sempre se mantenha à margem da consciência. Ocorre que o proletariado vai formando sua consciência de classe através de um contexto que integra diferentes fatos da vida social. É essa totalidade “é que o conhecimento dos fatos se torna possível enquanto conhecimento da realidade” (Georg Lukács, “História e consciência de classe”, ed. Martins Fontes, 2003, pág. 76).

Se as relações de produção são ocultadas do trabalhador surge o que se rotula de reificação, ou seja, o produto do trabalho passa a ser uma mercadoria. Há a abstração do trabalho, passando a ser coisa. O homem se subordina à máquina. O valor passa a ser, então, exclusivamente econômico.

O homem perde sua identidade e, pois, fica à margem da sociedade. Essa é a massa, na visão marxista ou o lumpemproletariado.

A dominação se revela pela detenção dos meios de produção. Ao se colocar o operário em posição de produzir (vende ou aliena sua força de trabalho) ele se mantém à margem da sociedade. Serve apenas como instrumento de manobra.

O tema pode ser visto de outras ópticas.

  1. A massa e sua psicologia. O indivíduo, na massa, entrega-se a seus instintos que sozinho teria refreado. “Na massa o indivíduo é colocado sob condições que lhe permitem se livrar dos recalcamentos de suas moções de impulsos inconscientes” (Sigmund Freud, “Psicologia das massas e análise do eu”, ed. L & M pocket, 2013, pág. 44). O contágio é imediato. Deixa de lados seus próprios pensamentos e convicções, incorporando um sentimento coletivo. Tem suas inibições anuladas e é levado pelas palavras de comando de alguém. Faz coisas que normalmente evita.

Freud assinala que encontrou o principal fenômeno da psicologia das massas, “a ausência de liberdade do indivíduo na massa” (ob. Cit., pág. 83).

Elias Canetti vai no mesmo sentido ao afirmar que “somente na massa é possível ao homem libertar-se do temor do contato” (”Massa e poder”, Cia. das Letras, 1995, pág. 14) e, tão logo “nos entregamos à massa não tememos o seu contato” (idem, ibidem).

Hanna Arendt utiliza outra terminologia. Fala em massa e ralé. “As massas têm em comum com a ralé apenas uma característica, ou seja, ambas estão fora de qualquer ramificação social e representação política normal. As massas não herdam, como o faz a ralé, os padrões e atitudes da classe dominante, mas refletem, e de certo modo pervertem, os padrões e atitudes de todas as classes em relação aos negócios públicos” (Hanna Arendt, “Origens do totalitarismo”, ed. Cia. de Bolso, 2012, pág. 442).

O homem sozinho não tem iniciativa para participação na vida pública. Necessita de companhia ou de incentivo. Como disse Dostoiévski “para nós é pesado, até, ser gente, gente com corpo e sangue autênticos, próprios; temos vergonha disso, consideramos tal fato um opróbrio e procuramos ser uns homens gerais que nunca existiram” (“Memórias do subsolo”, ed. 34, 2009, pág. 147).

O ser humano alienado se insere em uma massa amorfa de desinteresse. A vida nada mais vale que o passar dos instantes. É a sequência natural do tempo. Nada se passa sob o céu. É mera passagem. As preocupações do dia a dia são inconsequentes e irrelevantes. Não há teoria. Só prática errante da convivência. Sem preocupações salvo a sobrevivência. Nenhum castelo a ser erguido. Nenhum sonho a ser sonhado. Nem visão do futuro. Nada. O ser humano colocado em tal situação não tem problemas psicológicos, ou não os considera como tal.

Turgueniev apreendeu bem o problema ao dizer que “ao longo de toda a minha vida, sempre encontrei meu lugar ocupado, talvez porque não o procurasse onde deveria fazê-lo” (“Diário de um homem supérfluo”, ed. 34, 2018, pág. 18).

O ser humano da massa está sempre atrasado. O homem supérfluo ainda tem sensações de ciúme, inveja ou, talvez de insignificância (pág. 38). O brasileiro a que me refiro nem isso tem. Está tão abandonado, tão inerte e tão inerme que só lhe resta a vida do momento. Nenhuma perspectiva futura. Seus filhos igualmente seguirão seu caminho e serão apenas estatísticas.

Não é pelo fato de pensar que existe; é só o fato da existência biológica. Existe, não vive.

  1. O conhecimento político popular. Há na sociedade o povo que não é apenas a quantidade que identificaria a população, mas uma crença que se forma politicamente. Em “Protágoras”, Sócrates discute se a virtude pode ser transmitida. A discussão ocorre com um sofista (Protágoras) que sustenta ser possível ensinar a virtude, inclusive a cívica. Protágoras ensina que “quando o debate envolve a solicitação de um aconselhamento que diz respeito à virtude cívica, esfera em que podem ser inteiramente norteadas pela justiça e o bom senso, as pessoas admitem naturalmente o aconselhamento de quem quer que seja, na medida em que se pensa que todos são aquinhoados por essa virtude, pois caso contrário os Estados não existiriam” (323 a). Prossegue Protágoras afirmando que “é razoável admitir que todos os homens sejam conselheiros no que toca a essa virtude, na medida em que todos creem que todos os seres humanos possuem alguma parcela dela” (323 c).

Entende, pois, o filósofo que a virtude cívica está em todos os homens e mulheres. Não há que ter um conhecimento especial. Provém da própria vida em comunidade e na polis.

O pensamento sofístico de Protágoras é bastante interessante. O homem vive em coletividade e ali ouve as coisas, absorve-as, não domina o conteúdo, mas recebe informações. Não pondera sobre elas. Simplesmente as processa, mas sem consequências ou absorção de ideias. Dá palpite sem base dogmática ou fundamento teórico. Emite opiniões rebarbativas que ouviu de outrem. Ou, às vezes tem sua própria opinião formada por ouvir dizer no balcão da padaria, na calçada ou no boteco.

Sua formação ainda é originária.

  1. A organização social primitiva. A sociedade se organiza, através dos tempos, inicialmente pela formação de grupos (tribos). Confrontam-se com outros. Subordinam-nos. Criam-se chefias (cacique, líder) através de símbolos (totem) e surgem os que detêm contato ou conhecimento com o transcendente (pajés, xamãs, etc.). Aos poucos instaura-se relação de subordinação. Os místicos ameaçam pelo divino (conhecem os períodos das chuvas, das secas, dos trovões e indicam quando se deve plantar e o quê). Dominam pela crença.

O povo se mantém à parte do conhecimento técnico ou empírico. Forma-se paralelamente uma classe que trabalha e, através de ganhos, mantêm o portador do conhecimento dos fenômenos naturais. Instituem-se, então, as classes. Os sacerdotes, os proprietários e os trabalhadores. Os primeiros constituem a elite, os segundos uma classe média que utiliza seus ganhos para se imiscuir nos “negócios públicos” e a classe absolutamente ignorante e desvalida.

Aos poucos a sociedade evolui, passando rapidamente pela Idade Média, onde surgem a burguesia (os primeiros possuidores do capital) e o proletariado. A nobreza como sempre prevalece.

  1. A soberania popular ou divina? Soberano, aqui, não tem o significado emprestado à palavra por Carl Schmitt de que “soberano é quem decide sobre o estado de exceção” (“Teologia política”, ed. Del Rey, 2006, Belo Horizonte, pág. 7). Ficamos com a clássica noção de Jean Bodin de que “a soberania é o poder absoluto e perpétuo de uma República” (“Los seis libros de la República”, ed. Tecnos, 3ª ed., 1997, pág. 47, Capítulo VIII). Absoluto que não reconhece outro poder sobre ele, nem externa nem internamente.

Teoria hoje já superada estabelecia que a soberania tinha caráter divino. Como está na Bíblia: “Cada um se submeta às autoridades constituídas, pois não há autoridade que não venha de Deus e as que existem foram estabelecidas por Deus” (“Romanos”, 13,1). A teoria moderna e aceita é de que a teoria da soberania popular.

O Estado brasileiro tem natureza laica, separado de qualquer igreja e, declaradamente, assume a soberania popular (parágrafo único do art. 1º).

  1. Quem é o povo a que alude o parágrafo único do art. 1º da Constituição? Não são, positivamente, os abandonados da vida. A concepção rousseauniana é apenas quantitativa, limitando-se a dizer que o instituir das leis deve saber para quem legisla (Jean-Jacques Rousseau, “Du contrat social”, ed. Champion Classique, 2010, Paris, pág. 175, capítulo X). Não o define, indica.

Povo não se confunde com população. Esta tem a característica de quantidade. Qual o número da população de um país? Não é isso de que cogita. Pretendemos identificar a qual o povo brasileiro. O que pensa? Como sente? De que forma age?

Como diz Bertrand de Jouvenel, há o direito ilimitado de mando, mas não inerente aos governantes. “Este derecho pertenece a una potência superior – a Dios o al pueblo” (“El poder”, editora nacional, Madrid, 2ª ed., 1974, pág. 46). Como força originária e instauradora do poder, assenta-se o poder no povo.

Só que a soberania não se assenta no povo por sua obra e graça. Ao contrário, advém da violência originária. No denominado direito natural a violência era dado da natureza. É intrínseca a seu exercício. O direito primitivo não tinha regras; apenas violência. No direito positivo, a crítica incide sobre seus meios (Walter Benjamin, “Escritos sobre mito e linguagem”, ed. 34, 1ª ed., 2011, São Paulo, pág. 124). Figuraria, destarte, a violência, como “instauradora do direito” (ob. Cit., pág. 135). Ela também o mantém.

É complexo e contraditório como o direito nasce com a violência. É a forma de subjugação dos outros, seja pela violência física, seja pela violência persuasiva. A segunda é a maneira moderna.

Na origem, pois, a instituição do Estado advém da dominação de uma tribo por outra. Mais modernamente, a dominação se faz pela estratégia. É o que garante o contrato de direito “de origem violenta, mesmo que este poder não tenha sido introduzido no contrato pela violência” (Walter Benjamin, ob. Cit., pág. 137). Sob outra óptica é a afirmação de David Hume para quem “o homem, que nasce numa família, é compelido a preservar a sociedade por necessidade, por inclinação natural e por hábito” (“Ensaios políticos”, ed. Martins Fontes, 2003, pág. 26). Na sequência, afirma que é a obediência que prevalece e “é a nova obrigação” que o povo assume (ob. Cit., pág. 27). Da mesma forma acha John Locke, entendendo que os governos se iniciaram “pelo consentimento do povo” (“Dois tratados sobre o governo”, Livro II, item 108, ed. Martins Fontes, 2005, pág. 476). Montesquieu não diverge – “dans la republique, le peuple em corps a la souveraine puissance, c’est une démocratie” (De l’esprit des lois”, GF. Flammarion, 1979, vol. I, Paris, Livre II, chapitre II, pág. 131).

O povo não tem, então, caráter meramente quantitativo que insinua o conceito de população.

Nem pode ter conteúdo politicamente manipulável. Por exemplo, no dizer de Lincoln – o governo do povo, pelo povo e para o povo. Frases como “trabalharemos pelo povo”, “temos que atender os anseios do povo”, “o povo é quem manda”, “vamos fazer o que o povo quiser”. Frases destituídas de sentido jurídico ou social, mas úteis no discurso político.

A menção aos clássicos da filosofia política se impôs, para que se tenha ideia de como os conceitos evoluem e podem ser analisados.

Inicialmente, o estado de natureza que resulta do confronto hobbesiano. Em seguida, a conquista e o estabelecimento do Estado através da aquiescência dos grupos, com renúncia a direitos naturais e submissão a um órgão de controle. A seguir, a dominação pela estratégia.

Vende-se a ideia, sempre, de que é o povo o titular da soberania e ele é quem decide. Diz-se que é sempre o povo que governa. Assinala José Afonso da Silva que “podemos, assim, admitir que a democracia é um processo de convivência social em que o poder emana do povo, há de ser exercido, direta ou indiretamente, pelo povo e em proveito do povo” (“Comentário contextual à Constituição”, ed. Malheiros, 4ª ed., 2007, pág. 40). Acrescenta que é o povo a fonte primária do poder o que caracteriza a soberania popular.

O povo a que se refere o autor como fonte primária deixa de existir na modernidade. Aliás, acho que nunca existiu como fundamento do poder. É verdadeira figura de linguagem. Quase metonímia.

  1. O paradoxo do governo. Um dos paradoxos que se coloca: se é o povo quem governa, quando muda o povo, não muda o governo? O povo não é, pois, noção estática? Não. O povo é cambiável, mas a soberania sempre nele se assenta. Mas, não é a quantidade de população que vale. O povo tem conteúdo sociológico. Como o espírito de nação.

Se o povo está na origem do poder soberano e nele se assenta a soberania, como se compreende a manutenção de tal poder se o povo já não é o mesmo?

Ocorre que o conceito não se altera. A população nasce e morre, desaparece aquela população, mas o povo continua intacto. Mesmo porque, não é quantidade; é conceito.

O conceito de povo, pois, não muda com o passar dos séculos e também com as frequentes alterações de governos. Estes, na democracia, mudam a cada período. Alterações constitucionais são feitas, a legislação é alterada, mas o povo não muda.

O significado do medo e da esperança em Spinoza. Os homens ao se submeterem, fazem-no por medo, mas têm permanente esperança de se libertarem. Diz o autor que “a natureza humana, porém, não tolera ser totalmente coagida” (Baruch de Spinoza, “Tratado teológico-político”, ed. Martins Fontes, 2008, pág. 86). Quando os homens agem apenas por medo fazem o que não gostariam. Assim, a frase é lapidar, “as leis, qualquer que seja o regime, terão de ser definidas de forma que os homens se sintam constrangidos, não tanto pelo medo como pela esperança de algum bem que desejem acima de tudo” (idem, ibidem).

Logo, é fundamental que os dominadores saibam para quem estão legislando.

Primeiro aspecto a ser ressaltado é o da ciência e consciência de quem é o povo. Quem é esse elemento humano a que a norma se dirige? Por isso é que Montesquieu afirma que a legislação é sempre dirigida a um povo e ele não se referia às leis, mas a seu espírito (ob. Cit., livre Premier, chapitre III, pág. 129 – em francês, “comme je ne traite point des lois, mais de l’esprit des lois”.

Não se pode exigir absurdo do povo. É que ele está na base do poder soberano. Nele é que se assenta a soberania.

Spinoza entende por democracia “como a união de um conjunto de homens que detêm colegialmente o pleno direito a tudo o que estiver em seu poder” (ob. Cit., pág. 240). Assim, às autoridades compete o comando, enquanto aos “súditos, como tínhamos dito, compete executar as suas ordens” (ob. Cit., pág. 241). Spinoza distingue o escravo que “é obrigado a obedecer as ordens do dono” e o súdito “que faz, por ordem da autoridade soberana, o que é útil ao bem comum e, consequentemente, também é útil a si próprio” (ob. Cit., pág. 242).

O governo não é do povo. É do grupo que toma conta dele. Pode ser por eleições diretas ou não. O resultado será o mesmo. O governo passa a pertencer àquele que melhor soube manipular os conceitos de captação da vontade do eleitor. Este é o objeto da conquista. Prepara-se, psicologicamente, um artefato de propaganda tão imenso e tão profundo que as pessoas se sentem por ele atraídas. A atração despertada é de tal ordem que elas se deixam seduzir por promessas sabidamente inconsequentes e não realizáveis.

O governante assume em nome de seus eleitores, faz promessas, discursos com boa plástica de ideias, gestos identificados com o homem salvador, o conquistador, o São Sebastião redivivo.

Posteriormente, ignora-as, passa a ver a realidade dura da prática orçamentárias, suas limitações, o teto, as necessidades infinitas, as pressões políticas, os cargos que precisam ser ocupados, as composições com os partidos. Um inferno.

O objeto do desejo, o Estado. O descumprimento das promessas (o povo esquece, tem memória curta). A reeleição à vista. Restos que sobram da ganância dos apaniguados políticos. A deturpação da seriedade prometida. A corrupção. A roda viva do destempero e a perda da dignidade. Tudo é muito rápido.

  1. Algumas assertivas. Primeiro ponto a se afirmar é que o povo é uma coletividade submetida a uma ordem normativa. O governante, em segundo lugar, deve estar ciente para quem está legislando. Por consequência, cada povo é diferente do outro e depende das circunstâncias espaciais e temporais do Estado em que vivem.

Atenção: não tem caráter quantitativo. Não tenho que indagar quantas pessoas vivem sob aquele governo. O que importa saber é que tipo de povo a que a norma irá disciplinar.

Povo tem densidade sociológica e mesmo ideológica. Mas, em seu interior há uma série de distinções que se impõe fazer.

É como se fora os dois corpos do rei, teoria desenvolvida na Idade Média. A perpetuidade da cabeça do reino aliada ao conceito de res qui nunquam moritur, ou seja, o rei que nunca morre, tal como nos descreve Ernst H. Kantorowicz (“Los dos cuerpos del rey”, ed. Akal, Madrid, 2012, pág. 319). Aqui, o rei não desaparece, mesmo quando morre, subsiste a coroa a ensejar a continuação do reinado. No caso do povo, ele não desaparece nunca. Mudam as pessoas mas o conceito prossegue incólume.

A massa amorfa continua, como os dois corpos do rei. O povo está morto, viva o povo. As necessidades públicas mudam com o passar dos tempos. Na Antiguidade e na Idade Média os excrementos eram jogados na via pública. O bodum agoniava a todos. Inventa-se a coleta pública através dos esgotos. Purifica-se a água. Enfim, as necessidades se alteram e modifica-se a estrutura pública.

Ocorre que os governantes atendem às necessidades se e enquanto há reclamação, movimentos de rua, críticas, distribuição de panfletos. Uma vez cessa a pressão, esmorece o atendimento.

O político só entende uma linguagem – a das ruas e da pressão. No mais, ouvidos moucos a todos e a tudo. Por vezes, num gesto de benemerência logra alguma atuação pública que possa atender a pequena parte da população. Mas, não dos despossuídos e dos abandonados.

  1. A massa amorfa (ralé). Há uma grande massa que é absolutamente indiferente ao Estado. Vive no paralelo. São os abandonados, os párias, os desconectados com o mundo, os indiferentes, os famintos, os molambos (a música de Jaime Florence e Augusto Mesquita), aquele, enfim, que foi abandonado pela sorte e pela sociedade.

Bem anotou Hanna Arendt que “a ralé não é apenas o refugo mas também o subproduto da sociedade burguesa” (“As origens do totalitarismo”, ed. Cia. De Bolso, 2012, pág. 229).

Interessante a distinção que faz entre massa e ralé. “As massas têm em comum com a ralé apenas uma característica, ou seja, ambas estão fora de qualquer ramificação social e representação política normal. As massas não herdam, como o faz a ralé, os padrões e atitudes da classe dominante, mas refletem, e de certo como pervertem, os padrões e atitudes de todas as classes em relação aos negócios públicos” (ob. Cit., pág. 442).

Se pudéssemos efetuar uma gradação, diríamos que no primeiro plano vem a elite (grandes milionários, políticos e empresários). Segue a classe média formada por profissionais liberais e empresários menores). Em seguida, uma classe consciente (artistas, intelectuais). Depois, a massa que absorve o costume dos de cima e, por fim, a ralé, imensa quantidade da sociedade abandonada, seviciada, ludibriada e abandonada.

Massa e ralé só valem quando, servindo também de massa de manobra a ideias que não estão no governo, buscam elevar-se a ele. Quando buscam assumir o governo, aí sim, podem utilizar massa e ralé para manifestações de rua, agressões públicas.

Não apenas aqueles que vagam pelas ruas sem ter onde ficar ou dormem nelas por vontade própria ou por desamparo da família. Não é apenas a esses a que nos referimos.

Vale também para os que, embora tendo um mínimo de educação e rudimentos de conhecimento, igualmente apenas trabalha para sobre vivência, sem ter qualquer perspectiva na vida. Simplesmente, deixa a vida levar de Zeca Pagodinho.

Em verdade não se nauseiam com o mundo nem com a vida, nem alcança o limite da angústia kirkegaardiana ou sartreana, mesmo porque não têm compreensão para tanto. Simplesmente perdem-se no abandono da própria sorte, na bebida, no desalento.

A sociedade não os quer; a religião os abandonou; a família vira-lhe as costas. Esse não é povo. É massa excluída da convivência social.

Esse não detém o poder soberano. Está fora de tal conceito, porque alienado pela sociedade em que vive.

  1. Há um conceito positivo de povo? O conceito de povo é histórico. Nasce no momento em que há uma união de um grupo para constituir uma pessoa diversa que os dirigirá. Em primeiro lugar, há a sujeição do grupo, na forma descrita por Hobbes (“Leviatã”, Ícone editora, 2000, pág. 126) em que os homens desistem reciprocamente de seu direito de autogoverno.

Um grupo adere, de forma consciente, a um pacto, dando origem ao Estado que, daí em diante, o dirigirá. Cada grupo firmaria um pacto. Cada pacto dá nascimento a um Estado. Diversos Estados originários podem unir-se a outros e formarem novos Estados ou deles se separarem.

Instituído o Estado ele deve traçar suas finalidades e adaptá-las permanentemente (István Mészáros, “A montanha que devemos conquistar”, ed. Boitempo, 2015, pág. 55).

Aí surge um problema que dificilmente tem solução pacífica. É a instituição do governo. Alguém (pessoa física) tem que dirigir o Estado. Imprime nele sua ideologia e busca comandar os destinos do Estado, de acordo com suas pretensões, seus desígnios e as finalidades traçadas em documento solene (Constituição) de sua instituição.

Logo surgem os conflitos. Nunca os desejos dos governantes são compatíveis com os dos governados. Os conflitos surgem naturalmente. Ideologias diferentes partem para o confronto. Interesses se excluem. As classes não combinam e entram em confronto. Até mesmo os órgãos de exercício de poder não se entendem. Daí a famosa frase de Montesquieu de que aquele que detém o poder tende a abusar dele. É uma verdade eterna.

Difícil especificar o que é povo. Podemos apontar indícios e tentar apartá-lo, mas ficamos sem resposta.

  1. O que não é povo. Riqueza e intelecto. Extrema pobreza. A pobreza como privação de capacidades. Podemos dizer, sem medo de errar que a elite não é povo. O que é, então, a elite? Temos dois pontos a observar: a) uma elite do dinheiro. A chamada burguesia. São os que, por caminhos corretos ou por estradas sinuosas, chegaram a uma situação de endinheirados. Ricos. No mais das vezes, as sendas são tortuosas. Esbulho possessório, invasões, mortes, corrupção, contrabando, tráfico, tudo é praticado às escondidas e vão formando uma elite de dinheiro. Não se descartam, claro, aqueles que ganharam dinheiro por sorte (sorteio de loterias, bingos, cassinos) ou os que, por fim, ganharam licitamente (vitória na indústria, comércio, agricultura, pecuária, profanadores religiosos, profissões liberais, etc.). b) uma elite intelectual. Os que vingaram através de muito estudo e leitura, dedicação exclusiva para enriquecer a mente.

Esta classe (a) não é povo.

Igualmente, não podemos dizer que constituem o povo aqueles que se encontram em extrema pobreza. Absolutamente abandonados pela vida, viram-se, por uma série de circunstâncias, jogados na sarjeta. A pobreza pode ser ocasional, mas, normalmente, estão à margem da sociedade.

De outro lado, a massa de drogados, lançados no vício por uma série de razões. Deixam de lado valores familiares e uma vida normal, para viverem desidratados dos bens da vida. Largam tudo e vivem como molambos nas ruas. Não esmolam. São vítimas de problemas por que passaram. Os mais diversos. Estão à margem da sociedade. Não se incluem na noção de povo a que queremos chegar.

Da mesma forma a maioria que vive na periferia das cidades e luta apenas pela sobrevivência. Vivem do resto. São analfabetos, que lutam por algum emprego, ainda que efêmero, para sua subsistência.

Gilberto Freire retratou essa realidade em seu “Casa Grande e Senzala” ao dizer do início da colocação: “Formou-se na América tropical uma sociedade agrária na estrutura, escravocrata da técnica de exploração econômica, híbrida de índio – e mais tarde de negro – na composição” (ed. Círculo do livro, 1980, capítulo I, pág. 43). Na sociedade colonial, isso se reflete: “incoerência e instabilidade no povoamento; pobreza e miséria na economia; dissolução nos costumes; inércia e corrupção nos dirigentes leigos e eclesiásticos” (Caio Prado Júnior, “Formação do Brasil contemporâneo”, ed. Publifolha, 2000, pág. 365). O reflexo da sociedade colonial ainda nos persegue. Há dois blocos maciços e divisíveis: a casa grande de um lado e a senzala de outro. Hoje, já na miscigenação das raças e a incorporação (destruição) do índio.

A periferia não está incorporada. Não me refiro à exclusão de toda a periferia. Parte dela é consciente. Mas, o que fica excluído é o marginal, aquele que ignora o que se passa a seu lado e vive apenas para sua subsistência. É o subnutrido. Esse não integra o povo.

Não podemos nem queremos crucificar a pobreza como marginalidade, mas dar a ela o enfoque de Amartya Sen. Afirma que “a pobreza deve ser vista como privação de capacidades básicas em vez de meramente como baixo nível de renda” (“Desenvolvimento como liberdade”, ed. Companhia das Letras, 2000, pág. 109). O mesmo autor afirma que se fosse dada a opção entre liberdades políticas e satisfação de necessidades econômicas, invariavelmente, a resposta seria pela segunda alternativa (Ob. Cit., pág. 176).

Todos os enumerados acima formam um ponto de vulneráveis sociais. Não estão arrolados e incluídos como povo.

  1. Enfim, o que é o povo na Constituição Federal? O voto. Excluímos a elite, chamada classe A e também as classes marginalizadas (molambos, drogados, a extrema pobreza, os favelados e os presos). Os presos entram aqui, porque buscam o total afastamento da sociedade. Agridem-na. Não importa indagar as múltiplas razões de seu comportamento. O que vale é que a ela são inadaptados.

O que forma o povo é o que resta das exclusões acima. A classe média, ou seja, a que está pendurada em cargos governamentais ou trabalha nas pequenas e grandes empresas ou são proprietários das primeiras. Os que integram as denominadas profissões liberais (advogados, médicos, dentistas, etc.). Os que trabalham no comércio e na indústria, os que já foram rotulados de operários, a partir do momento em que se unem e ganham consciência de classe, como já se viu. Em suma, todos aqueles que, de uma forma ou de outra, têm consciência do local em que vivem e participam da vida política do país.

A participação na vida política do país compreende estar integrado em algum partido político ou que, de qualquer forma, se interessam pelos debates públicos, deles participam como integrantes ou opinantes das políticas públicas.

Deixam, então, de ser meros indivíduos e passam a ser cidadãos. Não confundir no conceito apenas aquele que vota. O mero votante não é consciente. Vota para se livrar de obrigação imposta constitucionalmente. No mais das vezes, por uma dádiva que lhe é oferecida pelo candidato.

O voto, no Brasil, ainda tem a mesma característica do passado descrito por Vitor Nunes Leal em que quem mandava era o coronel, “que comanda discricionariamente um lote considerável de votos de cabresto” (“Coronelismo, enxada e voto”, ed. Alfa-Ômega, 1949, pág. 23). Hoje, mandam os cabos eleitorais, os marqueteiros, o vendedor de ilusões. Assumiram o lugar do coronel. O mesmo é relatado por Raymundo Faoro (“Os donos do poder”, ed. Globo, 1989, vol. 2, pág. 385).

Hoje, o sistema mudou de nome, mas os personagens são semelhantes. É o dinheiro, o cabo eleitoral, as promessas de emprego, a destinação de verbas que vão captar a sensibilidade do eleitor e eleger aqueles que, depois, lhes viram as costas.

Como bem diz Raymundo Faoro, “O governo, para o povo, não é o protetor, o defensor, a guarda vigilante de sua vontade e de seus interesses: mas o explorador, o algoz, o perseguidor” (ob. Cit., pág. 386).

Vê-se, então, o governo como antípoda do povo. Este reclama, exaspera-se até que cheguem novas eleições para, então, mudar os representantes. Só que o sistema eleitoral e partidário está de tal forma viciado, que não se muda nada e o Gólgota prossegue.

  1. O exercício do poder. Soberania popular. Representatividade. Poder constituinte e constituído. Hoje, não mais é possível ter-se a democracia direta instituída por Clístenes e Péricles na Grécia Antiga. O Ágora, agora, são as urnas eletrônicas. As decisões são tomadas por assembleias eleitas pelo povo. Não a totalidade dos cidadãos, mas aqueles que tiveram sua vontade cooptada por diversas e modernas formas de persuasão.

O poder é exercido diretamente pelo povo (plebiscito, referendo e iniciativa popular – incisos I a III do art. 14 da Constituição Federal). O Plebiscito é forma de manifestação popular prévia à edição de uma lei. O povo é consultado se deseja ou não determinada medida. Há concordância ou não na extinção dos cargos de senador suplente? Há uma decisão e, então, obriga-se o Parlamento a editar a lei.

O referendo é forma de aprovação da lei. Primeiramente, o Parlamento vota e aprova a lei. Depois, submete-a a escrutínio popular. Se houver consentimento, a lei está aprovada. Recusada, é arquivada.

A iniciativa popular decorre de subscrição de eleitores diante de certa situação, por exemplo, a ficha limpa, na modernidade brasileira. Os condenados em segundo grau por decisão judicial, no âmbito penal, não podem ser candidatos. Proposta a lei, ela é votada pelo Congresso Nacional e, aprovada, entra em vigor.

Estas são as formas rotuladas de democracia direta, através de sufrágio universal. É a soberania popular que se manifesta.

Como diz José Afonso da Silva, “o principio participativo caracteriza-se pela participação direta e pessoal da cidadania na formação dos atos de governo” (“Comentário Contextual à Constituição”, ed. Malheiros, 4ª. ed., 2007, pág. 41).

De outro lado há a democracia indireta, ou seja, a vontade popular decorre da representação. Distingue-se da procuração. Esta intitula alguém a falar em nome do outorgante e pode ser revogada. Na representação, há uma delegação de poderes em nome do representado. Este é o povo; aquele, o parlamentar. É o que dispõe o parágrafo único do art. 1º da Constituição Federal.

Os representantes do povo são os deputados (art. 45 da Constituição Federal). A representação é renovada a cada quatro anos (parágrafo único do art. 44). O Senado não representa o povo, mas os Estados-membros da Federação (art. 46).

Estas são as formas de participação do povo nas decisões governamentais. Três instrumentos de exercício de cidadania, ao lado da eleição de representantes.

Quem instituí o pacto constitucional para regramento jurídico da sociedade é o poder constituinte. Ela elabora um documento formal que contém a arquitetura do poder e os direitos e garantias individuais. É a denominada constituição material, a saber, a forma e os exercentes (órgãos) das atribuições jurídicas e policiais (repressão para manter coesa a coletividade). De outro lado, os direitos de resistência à estrutura de exercício do poder e respectivas garantias. Contrapeso necessário e imprescindível para o equilíbrio e manutenção da paz social.

Uma vez elabora o documento que contém o pacto social, surgem os órgãos de exercício de poder. A partir daí, o Parlamento é que terá a atribuição de alterar a ordem jurídica quando necessária. Daí o poder constituído. Este está subordinado a eventuais amarras (cláusulas pétreas) instituídas pelo primeiro.

  1. Conclusões. O Brasil está estruturado em classes. Há uma elite (econômica e intelectual), há a massa inerme e alienada descrita e o povo (que buscamos identificar). Reflexo, ainda, de nossa cultura colonial escravagista.

Buscamos, anteriormente, uma estratificação das classes. É empírica, sem dúvida, mas identifica de alguma forma os escalões dominantes da sociedade.

Evidente que os limites e as distinções não são absolutamente claros e rígidos. Procuramos apontar os dados de como vemos a sociedade brasileira. É uma sociedade preconceituosa e elitizada de um lado e outra sociedade, abandonada e pobre. No meio de tais extremos, está o povo, ora buscando ascender, ora vendo suas esperanças ruírem.

A soberania é exercida não pelo povo, nos termos das distinções que fizemos, mas por uma massa de pessoas passíveis de manipulação. Aqui quase se confunde com a população (excetuados menores e não eleitores).

As decisões políticas, em tese tomadas em nome do povo, são manipuladas. São hipostasiadas. Acertadas nos desvãos. Decisões tomadas antes de sua votação. Nos salões de gabinetes persuasivos. Em jantares e reuniões noturnas, a desoras.

Enfim, o povo não comanda. Um grupo que logra assumir o poder em nome do povo é quem decide os rumos da nação e do país. Nesse passo, o povo é iludido e seduzido por um grupo dominante, como os porcos da fábula de Georges Orwell (“A revolução dos bichos”) que dominaram os outros bichos.