0l. Colocação do problema.ex regis 019de
02. Imputação e responsabilidade. O art. 186 do Código Civil
03. Responsabilidade subjetiva e objetiva.
04. O privado de discernimento. O Decreto Legislativo n. 186/2008 e a lei federal n. 13.146/2015.
05. O vulnerável social. Norbert Elias. O ser dominado.
06. Identidade e pertencimento.
07. O ser humano vulnerável.
08. A comunidade em Baumann. O deficiente.
09. Análise de “Édipo-rei” e “Antígona” de Sófocles. Há o destino? O conflito direito positivo e direitos humanos.
10. O artigo 928 do Código Civil e o art. 5º da LIDB. A realidade supera a norma jurídica. A sócio antropologia jurídica.
11. O direito financeiro consertando realidades.

          0l. Colocação do problema. As normas jurídicas não são aplicáveis apenas aos iguais. Nem todos estão na mesma posição social, econômica e jurídica para que o direito não os distinga. Como a sociedade é desigual, cabe aos homens interpretar a situação de cada um para não cometer injustiça. Dizia Rousseau que há dois tipos de desigualdade: a física e a moral. A primeira advém da natureza. A segunda “é estabelecida, ou pelo menos autorizada, pelo consentimento dos homens” (Jean-Jacques Rousseau, “Discurso sobre a origem e os fundamentos da desigualdade entre os homens”, ed. L. & M. Pocket, 2017, pág. 43).

          Falar em isonomia como tratar igualmente os iguais e desigualmente os desiguais na medida em que se desigualam é frase pomposa, mas de pouco conteúdo. Quem são os iguais e os desiguais e em que medida se desigualam? Questões que ficam sem resposta.

          A matéria, vê-se, não pode ser tratada em tese. Nada se pode tratar sem saber que há um ser humano no mundo. Não falamos do homem em tese. Este não existe. Referimo-nos ao homem inserido em determinado contexto social. Como disse o grande poeta inglês John Donner nos anos 1660, “nenhum homem é uma ilha, sozinho em si mesmo; cada homem é parte do continente, parte do todo”.

          Delimitando a indagação: Sobre a responsabilidade de um ser humano contextualizado em determinada sociedade e em relação com ela.

         Essa pessoa pratica ações voluntárias e involuntárias. Tem, pois, sob seu comando a decisão. Sabidamente, não podemos decidir sobre coisas que são naturais. Não decidimos sobre o movimento da terra em relação ao sol, nem se ele irá ou não emitir luz refletida em nosso planeta. “Ninguém delibera sobre o que é eterno”, disse Aristóteles (“Ética a Nicômaco”, Livro III, n. 23, ed. Atlas, 2009, pág. 62). Não deliberamos sobre seca ou chuva. Confirma Aristóteles: “Nós deliberamos sobre aquelas coisas que nos dizem respeito e que e dependem de nós, a saber sobre as ações que podem ser praticadas por nós” (ob. Cit., pág. 62, n. 33).

          Temos a possibilidade de decidir sobre nossas ações. O que ocorre é que somos seres sensíveis e, pois, temos desejos que se refletem em sentimentos positivos ou negativos. Ira e amor; coragem e medo; temperança e devassidão. Desejos que se chocam. Eles influenciam a tomada de decisão.

            Ninguém delibera sobre fenômenos naturais. Ocorre que há dois mundos, um empírico e outro o normativo. No primeiro, os fatos ocorrem; no segundo, disciplinam-se comportamentos. Não temos como fugir dos primeiros; temos que controlar os demais. Os seres humanos estão aí, cheios de desejos os mais primitivos e os mais sensatos. Em confronto.

          Logo, nossa análise incide sobre o ser em sociedade. Não o ser para si mesmo ou reflexivo. Mas, alguém que está aí (O “da-sein” de Heidegger ou “primeiro a existência; depois a essência” de Sartre). É o ser colocado no mundo. É o ser reificado, isto é, de carne e osso, na preciosa definição de Karl Marx.

  1. Imputação e responsabilidade. O art. 186 do Código Civil. Temos que analisar o problema da imputação para chegarmos ao da responsabilidade. O art. 186 dispõe: “Aquele que, por ação ou omissão voluntária, negligência ou imprudência, violar direito e causar dano a outrem, ainda que exclusivamente moral, comete ato ilícito”.

          Não nos deteremos em decompor o artigo, porque inúmeros autores já o fizeram. Vamos extrair dele o cerne. No mundo real, alguém causa um dano a outrem. Intersubjetividade e interação. Um e outro. Alguém sofre uma lesão. Qualquer que seja o dano. Há a ação ou omissão consciente e a ação ou omissão involuntária. O ato praticado deve ser contrário ao que dispõe a norma jurídica. Kelsen ao discorrer sobre o mundo normativo disse que a conduta oposta à prevista como devida enseja a sanção. Duas faces do comportamento: infração e sanção (“Teoria pura do direito”, Coimbra, Arménio Amado, 1960, pág. 49).

          No meio delas está a imputação que pressupõe a livre determinação da vontade que pressupõe a liberdade de compreensão do fato.

         Para sofrer uma imputação, o ser humano há de ser livre no deliberar. Não só sobre como o fato lhe chega, mas ter capacidade psíquica para isso. Não é só receber o fenômeno, mas entender com que perfil ele é compreendido. Não é o meramente empírico, mas também o subjetivo.

  1. Responsabilidade subjetiva e objetiva. Há responsabilidade com culpa ou subjetiva, ou seja, quando se tem capacidade de entender o fenômeno e outra sem culpa ou objetiva. São tipos diversos de responsabilidade. A primeira compreende a compreensão do caráter infracional do comportamento e “é a pessoa que deve suportar a consequência de sua ação antijurídica, típica e punível” (Regis Fernandes de Oliveira, “Infrações e sanções administrativas”, 3ª. ed., RT., 2012, pág. 50). A segunda prescinde da culpa; basta o dano e a conexão.
  2. O privado de discernimento. O Decreto Legislativo n. 186/2008 e a lei federal n. 13.146/2015. O problema que surge é daqueles privados de discernimento, seja por deficiência, ou seja, a “que tem impedimento de longo prazo de natureza física, mental, intelectual ou sensorial, o qual, em interação com uma ou mais barreiras, pode obstruir sua participação plena e efetiva na sociedade em igualdade de condições com as demais pessoas” (art. 2º da lei n. 13.146, de 6/7/2015). A lei sobreveio em cumprimento ao Decreto Legislativo n. 186/2008 que incorporou ao texto constitucional, por força do disposto no parágrafo 3º do art. 5º da Constituição. Dispõe que ”os tratados e convenções internacionais sobre direitos humanos que forem aprovados, em cada Casa do Congresso Nacional, em dois turnos, por três quintos dos votos dos respectivos membros, serão equivalentes às emendas constitucionais”.

         Logo, o Decreto Legislativo que incorporou o texto do tratado tem força de dispositivo constitucional. Em cumprimento ao texto sobreveio a lei ora em comento.

      De acordo com o Código Civil uma das causas de inimputabilidade é o menor, nos exatos termos do art. 5º, até os dezoito anos. Cessa a incapacidade nas hipóteses previstas no parágrafo único do mesmo artigo. Há a incapacidade absoluta dos menores de dezesseis anos; a relativa dos maiores de dezesseis e menores de dezoito.

         A responsabilidade é outra coisa, porque pode recair sobre pais, tutores, curadores ou responsáveis de forma geral.

  1. O vulnerável social. A sociedade em Norbert Elias. O ser dominado. Há, ao lado do que dispõe o Código Civil e o que comenta a doutrina, uma hipótese que tem sido estudada à luz de outros ramos de conhecimento, mas que não tem sido enfrentada pela teoria jurídica. É daqueles privados de discernimento por força de inadaptabilidade social.

      Dúvida não há que para a vida em sociedade é imprescindível que se criem mecanismos de controle dos comportamentos. O fundamento é importante, porque distingue as sociedades. Algumas logram a sedução e induzem condutas; outras buscam impor-se por códigos de comportamentos e terceiras abusam da violência. Mas, como diz Norbert Elias, “nenhuma sociedade pode sobreviver sem canalizar as pulsões e emoções do indivíduo, sem um controle muito específico de seu comportamento. Nenhum controle desse tipo é possível sem que as pessoas anteponham limitações uma às outras, e todas as limitações são convertidas, na pessoa a quem são impostas, em medo de um ou outro tipo” (“O processo civilizador”, ed. Zahar, 1993, 2º vol., pág. 270). Tudo advém da imposição do medo. Medo do outro, medo do emprego, medo da agressão, medo do Estado (polícia), de imposições sociais, etc.

        O coro da tragédia de Sófocles em “Antígona” diz que “há muitas maravilhas, mas nenhuma é tão maravilhosa quanto o homem”. Só que a violência o muda. Seguindo seu raciocínio dialético, diz Marx que “a violência é a parteira de toda velha sociedade que está prenhe de uma nova” (Karl Marx, “A ideologia alemã”, Martins Fontes, 1998, pág. 103). O que se exige, de outro lado, é o equilíbrio, que é a base da justiça (Friedrich Nietzsche, “Humano, demasiadamente humano”, Aforismo 22). Entre o ser maravilhoso e a violência exige-se equilíbrio. Ocorre que o sistema de direito é sempre de dominação (Michel Foucault, “Em defesa da sociedade”, Martins Fontes, 2005, pág. 32; Regis Fernandes de Oliveira, “Indagação sobre os limites da ação do Estado”, ed. RT., 2015, págs. 234/235).

          Há sempre um grupo dominador que se impõe à sociedade dominada.

          Há uma classe que se impõe a outra. Quem se impõe busca ser exclusivo. Afasta os demais. Não cria identidade.

  1. Identidade e pertencimento. Há diversos sentimentos em uma sociedade. Há a grande sociedade humana, mas não é disso que cuidaremos. Dentro desta forma-se um número imenso e incontável de pequenas comunidades. Agrupam-se por diversos motivos. Em todas elas existem proximidades e distanciamentos. Amizade e discórdia. A democracia pressupõe o conflito. O dissenso para obter o consenso. Comunidades são inúmeras: associações, sindicatos, condomínios, sociedades secretas, clubes, grupo de alunos e, por fim, mas não a última, a família.

         O que identifica cada uma é um sentimento de pertencimento. Como disse, é um sentimento. É achar-se ligado a outrem ou a alguém através de laços afetivos. Sentimento ou razão. Posso estar vinculado racionalmente a uma entidade de literatos, de filósofos ou a uma associação de juristas. Não há sentimento envolvido, mas eventualmente interesses culturais.

        Muitas vezes somos como Proteu ao mudar de forma e de convicção no momento que quisermos. Mas, a sociedade nos impele e nos empurra para nos agregarmos aos “nossos”. Ficamos perdidos na busca da identidade e de pertencimento.

       Os iguais, no mais das vezes, aproximam-se. Os empresários criam entidades para que possam associar-se; os empregados fazem o mesmo; empresas de comunicação instituem associações para se filiarem; advogados vinculam-se a suas entidades de classe, o mesmo fazendo médicos, engenheiros, arquitetos, dentistas e todos os demais.

      Como diz Zygmunt Baumann: “Em nossa época líquido-moderna, o mundo em nossa volta está repartido em fragmentos mal coordenados, enquanto as nossas existências individuais são fatiadas numa sucessão de episódios fragilmente conectados” (“Identidade”, ed. Zahar, 2005, pág. 18). A fragmentação do mundo (imigrantes, apátridas) leva à perda da identidade e do sentimento de pertencimento. O mesmo autor assinala que “identidade, a palavra do dia e do jogo mais comum da cidade, deve a atenção que atrai as paixões que desperta ao fato de que é a substituta da comunidade” (Zygmunt Baumann, ”Comunidade – a busca por segurança no mundo atual”, ed. Zahar, 2003, pág. 20).

       Ocorre que, enquanto as sociedades estão pacificadas, a busca da aproximação com o “nosso” é absolutamente adequada e tal sentimento prevalece nelas. O rico convive com o rico. O pobre com o pobre. Determinadas classes ficam segregadas. Outras se misturam, mas sempre a aproximação é com os iguais. Há uma permanente busca pela identidade.

        Quando se é membro de uma sociedade, somos, coletivamente, responsáveis por suas atitudes. É o que se rotula de responsabilidade coletiva, que, no dizer de Hanna Arendt significa ser “responsável por algo que não fiz, e a razão para minha responsabilidade deve ser o fato de eu pertencer a um grupo (um coletivo), o que nenhum ato voluntário meu pode dissolver” (“Responsabilidade e julgamento”, Cia. das Letras, 2010, pág. 216). Pertencendo a um grupo ou a uma sociedade, a responsabilidade me atinge. É que a autora chama de dente da engrenagem (fls. 91).

       Podemos falar na culpa intergeracional. Mas, para os efeitos do que estamos tratando, o problema está localizado. É aqui, no Brasil, na sociedade brasileira, aqui e agora.

Com tais dados é que podemos analisar a situação do vulnerável e esclarecer do que se trata.

  1. O ser humano vulnerável. Entramos a analisar o mundo dos vulneráveis. Quando estamos distantes de tal realidade, não a percebemos. É como a dor. Só a sentimos quando ela surge. Nas estruturas sociais há diversas classes. Durante toda a vida foi assim.

        Como diz Amartya Sen “um número de pessoas em todo o mundo é vítima de várias formas de privação de liberdade” (“Desenvolvimento como liberdade”, ed. Cia. das Letras, 2002, pág. 29). Acrescenta que “fomes coletivas continuam a ocorrer em determinadas regiões, negando a milhões a liberdade básica de sobreviver” (idem, ibidem). Prossegue o autor: “a pobreza deve ser vista como privação de capacidades básicas em vez de meramente como baixo nível de renda, que é o critério tradicional de identificação da pobreza” (ob. Cit., pág. 109).

        Sabidamente, o Brasil é um dos países de maior desequilíbrio social. Há uma elite que detém grande parte da fortuna, uma classe média e uma extrema pobreza estimada 13.500.000 (treze milhões e trezentos mil pessoas), segundo dados do IBGE (Síntese de Indicadores Sociais) é o que divulga a Agência IBGE no dia 13/05/2020. Ademais, 73% do país são pretos ou pardos. Um por cento (1%) da população mais rica (2.1 milhões) teve rendimento médio mensal de R$27.744 reais, enquanto os 50% mais pobres – cerca de 100 milhões – só ganharam R$820,00 reais por mês.

         Essa é a situação dramática por que passa o país.

       De pouco vale invocar a opinião de juristas, porque não se debruçam sobre tal assunto. Sobre ele passam com os pés sob brasa. Ficam na análise exclusiva da norma, deixando os aspectos antropológicos, sociológicos e econômicos a cargo dos especialistas de cada área, sem atentar que o fenômeno social é um só.

         Assim, imaginemos, imaginemos apenas, uma situação de uma família negra que reside numa favela da periferia de São Paulo. Em primeiro lugar, uma facção criminosa manterá a ordem no local. Por aí já se vê que duas ordens jurídicas se encontram vigentes. A oficial dos códigos e a real das normas efetivas. Boaventura de Sousa Santos em “Direito de Pasárgada” bem descreve a correlação dos dois mundos jurídicos: o da norma e o da realidade. Duas existências, duas vigências e duas efetividades. Ângulos da existência, da vigência e da eficácia do direito. A norma oficial existe, é vigente, mas não eficaz; a outra tem os três momentos.

          A família imaginária tem três filhos. Todos vivem sob a tutela do PCC ou de outra facção. Habitam um barraco de madeira e lata. O homem (pode ser o pai ou não) faz o que pode para trazer algum alimento para casa. Vende alguma coisa, faz bicos, serve de mula. Sofre ao chegar em casa com quase nada. A mulher está desacorçoada. Os filhos olham-se. Olhares mudos. Mais uma noite que terão muito pouco que comer. E dormir? Sob panos recolhidos nas ruas. Um sobre o outro, porque o espaço é mínimo. A roupa: andrajos. Escola não tem. Tratamento médico é luxo. Dentário, pior ainda. Excrementos por toda parte. Se não têm água encanada e luz, como pensar em sanitários?

          Não estou descrevendo campo de concentração, mas favelas e cortiços. Estou descrevendo a periferia de São Paulo. Asfalto não há. O fio de água que corre é aproveitado como privada. O córrego não está saneado e a água que corre está repleta de coliforme fecais, ratos e baratas. Os pernilongos fazem a sinfonia da noite.

    Vivendo no inferno? Coisa parecida.

          Os três filhos do casal se entreolham para saber como será não o futuro, mas o dia de amanhã. O que comerão? O tráfico de drogas vê tudo. Um dos filhos tem cerca de seis anos e, então, é seduzido para servir distribuir trouxas. Sofre bullying. É obrigado a levar drogas sob pena de seus pais ou irmãos serem seviciados.

         Ressalto: a criança come mal. Não ingere vitaminas. O cérebro está sendo prejudicado. O corpo é franzino porque não come. O cérebro não se desenvolve. Proteínas? Nem pensar. Aulas? Onde?

        É a esse vulnerável a que me refiro. Dramatizei a situação? Basta ir à periferia para constatar a ferocidade da situação social de tais farrapos humanos. Relatos estão no livro de Geovane Martins, “O sol na cabeça”.

       Todos falam em solidariedade social como se isso fosse panaceia para todos os males. Em verdade, os ricos não querem o mesmo que os pobres, diz Tony Judt (“Um tratado sobre os nossos actuais descontentamentos”, ed. 70, Lisboa, 2010, pág. 161).

        Na sociedade absurdamente desigual, os pobres não podem obter tratamento médico, o que reduz a duração de suas vidas; não conseguem educação de qualidade e, pois, não podem almejar bons empregos. A água, a limpeza, a pureza do ar, a dignidade na habitação, na alimentação. Nada possuem. Criamos bolhas de apartheid. Se continuarmos assim, perderemos a noção de fraternidade (Tony Judt, ob. Cit., pág. 176).

        Vivemos em guetos de angústia. Erguemos muros para não enxergarmos. Blindamos nossos olhares para evitarmos a cegueira. Aí nasce o guri de Chico Buarque que “foi nascendo com cara de fome e eu não tinha nem nome para lhe dar”. Começa a dar presentes para a mãe e no final ele “chega estampado, manchete, retrato com venda nos olhos, legenda e as iniciais” e a mãe supôs que ele estivesse rindo.

         Essa, com crueza é a realidade do vulnerável social. Bem anotou Karl Marx que os fatos e personagens aparecem primeiro como tragédia e a segunda como farsa (“O dezoito brumário de Napoleão Bonaparte”). Claro que ela fala de personagens importantes; falo de um deles.

  1. A comunidade em Baumann. O deficiente. Invocamos de novo Baumann pela força de suas análises. Diz que é da natureza dos direitos humanos que, “embora se destinem ao gozo em separado (significam, a final, o direito a ter a diferença reconhecida e a continuar diferente sem temor a reprimendas ou punição), tenham que ser obtidos através de uma luta coletiva, e só possam ser garantidos coletivamente” (“Comunidade”, pág. 71).

          O que ocorre, em verdade, é que o diferente pode continuar a ser diferente, mas tem que ter sua diferença reconhecida. O que se busca em uma sociedade justa “é a eliminação dos impedimentos à distribuição equitativa das oportunidades” (ob. Cit., pág. 73).

         Aí se coloca o problema do que se quer superar no rol das possíveis oportunidades. O que ocorre é que a sociedade oprime e não deixa alternativas para os abandonados de todos os bens do Estado. A busca da felicidade fica no sonho.

           Os recursos estão nas mãos dos dominantes. A classe A e B é que logra eleição para cargos diretivos. Cuida, pois, de si própria. Para disfarçar a dominação deixam que se destinem algumas verbas para a periferia. Mas, apenas como farsa que depois se transforma em tragédia, parodiando e alterando o dizer de Marx.

         Como será que o guri que nasceu e vive em situação de absoluta segregação social e não se enquadra nas hipóteses legais de incapacidade previstas no art. 4º do Código Civil poderá ser responsabilizado pela prática de atos punidos pela lei civil? O art. 2º da lei n. 13.146, de 6 de julho de 2015 estabelece que: “Considera-se pessoa com deficiência aquela que tem impedimento de longo prazo de natureza física, mental, intelectual ou sensorial, o qual, em interação com uma ou mais barreiras, pode obstruir sua participação plena e efetiva na sociedade em igualdade de condições com as demais pessoas”.

        Aqui está o nosso vulnerável. Ele não subsiste no meio em que vive. Embora não tendo qualquer problema mental (supondo-se que tenha se alimentado de forma mais ou menos apropriada) vê-se logo no início de sua vida atraído e seduzido pelo tráfico. Onde a lei oficial não entra prevalece a do traficante. Ele dita as normas e as executa. Sem intermediários, sem processo. Julgamento imediato. O comando normativo é a ordem dada pelo chefe ou pelo imediato que a transmite.

         A lei estabelece que a pessoa com deficiência “tem direito à igualdade de oportunidades com as demais pessoas e não sofrerá nenhuma espécie de discriminação” (art. 4º. Da lei 13.146/2015). O parágrafo 1º estabelece o que se entende por discriminação toda ação ou omissão “que tenha o propósito ou o efeito de prejudicar, impedir ou anular o reconhecimento ou o exercício dos direitos e liberdades fundamentais”.

         Em suma, temos o país ideal onde as liberdades e oportunidades são respeitadas e todos os direitos assegurados. Temos, no reverso, o país das desigualdades, falta de oportunidades e alijamento social. A tese vitimaria deve ser demonstrada por sintomas, por dados da realidade, pelo meio onde o vulnerável vive, por todas as circunstâncias que acompanharam sua infância e sua puberdade. Não é possível lê-la senão em um contexto. “Elle décrit un processus de structuration” (René Girard, “La route antique des hommes pervers”, ed. Grasset, 1985, Paris, pág. 49). Neste livro, o autor descreve o sofrimento de Jó, de sua vitimização solitária e da perda de seus amigos e próximos. Dá bem para entender o que é ser isolado em uma sociedade.

         No Direito Penal a insciência da compreensão do fato delituoso é fixado em 14 anos, presumindo-se a violência em atentados contra a intimidade do menor. No campo civil, o Código Civil brasileiro dispõe sobre o assunto no art. 4º, complementado pela lei n. 13.146/2015 que da pessoa deficiente, que disciplinou Tratado Internacional internalizado no direito brasileiro.

  1. Análise de “Édipo rei” e “Antígona” de Sófocles. Há o destino? O conflito direito positivo e direitos humanos. Como resolver o problema à luz das normas jurídicas e da sociedade? O art. 1º. Da Constituição Federal estabelece que a República Federativa do Brasil tem como fundamentos: “III – a dignidade da pessoa humana”. O art. 3º coloca como um dos objetivos fundamentais: “construir uma sociedade livre, justa e solidária”, além de buscar “erradicar a pobreza e a marginalização e reduzir as desigualdades sociais e regionais”. Por fim, o art. 4º estabelece que, dentre os princípios de sustentação de nossa República está a “prevalência dos direitos humanos” (inciso II do art. 4º).

         Em outro tópico, ao cuidar da assistência social, a Constituição dispõe que um dos objetivos é “o amparo às crianças e adolescentes carentes” (inciso II do art. 203).

         É esse o plexo de dispositivos que incide sobre o tema ora tratado. Sequer necessitaríamos de leis para garantir e assegurar ao vulnerável todas as garantias de forma a integrá-lo na sociedade.

          O que ocorre, no entanto? Uma coisa é o mundo das normas; outra é o das realidades. Como uma interfere na outra?

          Estaria o vulnerável nas mesmas condições de Édipo (“Édipo-rei de Sófocles”) ao estar submetido ao signo do destino? Na tragédia de Sófocles Édipo é filho de Laio e Jocasta, reis de Tebas. O rei Pélope, da Élida recebera Laio em seu território, mas este se envolvera com seu filho Crisipo, que se suicida. Pélope amaldiçoa Laio e sua descendência. Ciente da maldição, quando Édipo nasce, o rei o entrega a um pastor para que o mate. Com pena, o pastor entrega Laio sob os cuidados do rei Pólibo, de Corinto.

          Édipo, sabedor da maldição de que mataria o pai, foge de Corinto. No caminho cruza com uma caravana onde está Laio e, após discussão, mata o rei, seu pai. Encaminha-se para Tebas onde decifra o enigma da Esfinge. A praga que atingira Tebas termina e, diante da notícia da morte de Laio, Édipo recebe a mão da rainha Jocasta.

          Posteriormente, nova praga atinge Tebas e enquanto não se descobrisse quem era o assassino de Laio e sua morte, a praga não arrefeceria. Descobre-se o assassino: Édipo.

          As conjecturas que surgem do texto são as mais diversas. Inúmeros autores já se debruçaram sobre o tema. Édipo não tinha ciência do que se passava. Seu destino estava traçado por força da maldição de Pélope. Poderia ele ter alterado seu destino?

          O homem é dono de seu caminho ou este já vem traçado pelos deuses? Há o destino? Há o livre arbítrio e, pois o homem pode escapar do que foi destinado?

       Não só essas indagações são válidas na obra de Sófocles. Mas, outra discussão importante para o tema que estamos tratando se impõe (Sófocles, “Antígona”). Édipo deixara quatro filhos de seu amor incestuoso (Antígona, Polinice, Etéocles e Ismênia). Em guerra pelo governo de Tebas, Polinice e Etéocles digladiam entre si e ambos morrem. Assume o reinado Creonte, tio de ambos. Determina que Etéocles por estar defendendo a cidade teria enterro adequado, enquanto Policine por estar atacando-a seria deixado ao abutres. Antígona se revolta.

         Surge aí outra sorte de confronto: a ordem legal de Creonte ou o princípio que advinha dos antepassados e dos deuses que era o enterro a todo mortal. O ordenamento positivo deve ser cumprido como meio de pacificação da sociedade. De outro lado, todos tinham direito a um enterro. Logo, houve um choque de realidades, a do direito positivo e a da realidade. Diz Castoriadis e diz que Creonte “défend la légalité – Il n’y a pas de cite sans lois” (Cornelius Castoriadis, “La cite e les lois – ce qui fait la Grèce, ed. Seuil, 2008, pág. 144). Mas, Antígona invoca a lei divina de enterrar os mortos. É o confronto entre o direito em vigor (édito de Creonte) e o “direito ideal (os princípios atemporais de Antígona)” (François Ost, “Contar a lei – as fontes do imaginário jurídico”, ed. Unisinos, 2007, pág. 205).

         O direito ideal manipula conceitos universais que entram em confronto com o direito positivo. Aqui, todos são responsáveis e devem suportar os encargos e ônus decorrentes de seu comportamento. Pode dar margem à desobediência civil definida por John Rawls como: “um público, não violento, consciente e não obstante um ato político, contrário à lei, geralmente praticado com o objeto de provocar uma mudança na lei e nas políticas do governo” (“Uma teoria da Justiça”, ed. Martins Fontes, 2002, pág. 404).

      Vê-se, pois, que uma criança jogada no mundo não pode ter o mesmo tratamento de outras que são amparadas, primeiro no lar, segundo na escola e terceiro, na sociedade que lhe deu todo anteparo contra injustiças.

        Nosso guri pode ser objeto de tais indagações filosóficas e terrenas, ao mesmo tempo? Se não existe o destino, o menor pode alterar sua vida ou está fadado a ser um malfeitor na sociedade? Os religiosos falam na interferência divina na vida das pessoas. O menor vulnerável pelo fato de ter nascido em bairro carente está fadado a ser um fora da lei ou ele supera as dificuldades?

       Enquanto isso não se resolve qual o tratamento jurídico que lhe deve ser dado? É um deficiente ou deve ser tratado como ser social e, pois, imputável? Jean-Pierre Vernant coloca o problema da seguinte forma: “Será que um homem é culpado porque cometeu uma falta ou então, se cometeu uma falta, será porque já era, de certa forma, culpado de nascença? Ou seja, a culpabilidade é o produto das decisões e dos atos dos indivíduos ou uma maldição que pesa sobre alguns de nós e talvez sobre todos, justificada do ponto de vista divino, mas absolutamente incompreensível do nosso? E quem faz com que, seja o que for que o homem faça, se escolheu tal coisa, será sempre culpado e, se escolheu outra, será culpado também: os deuses se divertem turvando os caminhos” (“Entre mito & política”, ed. Edusp, 2002, pág. 366). Tirésias entendia que os deuses conduzem tudo.

        Eis o trágico do mundo. Não podemos jamais separar o homem de seu contexto histórico. Se o guri nasceu onde nasceu pode ser perdoado? Pode ser eximido de toda culpa?

         Estamos falando de atos civis. Dos atos criminais responde em outra instância e por outros fundamentos. Aqui cuidamos de comportamentos que agridem o âmbito civil, a saber, problemas familiares, escolares, relacionamento com colegas e com os dominantes do pedaço, ou seja, o crime organizado. Mesmo se pratica ato de mula, ou seja, de encaminhamento de pacotes com drogas. Os usuários se tornam traficantes. O menino abandonado, sem escola, sem pais, sem orientação está totalmente inerme nas mãos dos bandidos.

        A responsabilidade civil pode decorrer do comportamento criminal. Pode ser consequência dele. Em matéria civil o assento jurídico está no art. 186 do Código Civil, como já se mencionou. Por ali e decompondo o dispositivo vê-se que há: a) uma conduta culposa, b) um dano e c) o nexo causal. Reparo se faz à conduta culposa, uma vez que o dano pode resultar do mero comportamento (dano objetivo).

        A responsabilidade pode ser contratual ou não. Aqui se afasta a contratual, porque o vulnerável não firma contratos. Realiza-os como compra e venda de cigarros, doces, bebidas em lojas, eventualmente realiza empréstimos (pode fazê-lo junto ao tráfico). Mas, não é dessa responsabilidade que se cuida. É, portanto, não contratual.

         O dano se caracteriza como diminuição ou eliminação efetiva de um bem patrimonial ou moral. O nexo causal há que estar presente no sentido de que a ação ou omissão do agente tenha causado o resultado.

         Pode ou não o dano resultar de um crime. O menor pode ter agredido verbalmente alguém ou ter-lhe imputado conduta criminosa. Pode também ter cometido assassínio, furto ou roubo. Pode ter apanhado uma bicicleta para uma volta tirando-a da esfera de disponibilidade do proprietário. Pode ter apanhado um patinete para divertir-se. As hipóteses são inúmeras.

         Em todos os casos, é imprescindível que se leve em conta a estrutura social em que vive, os problemas que teve em sua fase de crescimento, alimentação, falta de assistência médica e odontológica, vivência em lar desestruturado com pai bêbado e mãe prostituída, submissão ao tráfico, violência física sofrida por pais e amigos, eventualidade de ter sido estuprado, irmã violentada, inexistência de casa para tomar café da manhã, refeições e dormir. Sua vida é uma total ausência.

         Como imputar a tal criança responsabilidade por seu comportamento, quando esta perdeu todo seu sentido de solidariedade e de convívio? É um pária. A sociedade assim o fez.

         Se a sociedade o seviciou desde o início de sua vida, como agora lhe apresentar a fatura de seu comportamento antissocial, agressivo e odioso? Outra coisa não conheceu na vida senão ter sido violentado. Pelos pais, amigos, sociedade, meios de repressão, escola. Todos lhe foram adversos. Como esperar sorriso e felicidade? Tudo lhe foi roubado, a vida lhe foi madrasta.

        Há um verdadeiro confronto, como se deixou claro, entre a norma positivada do direito e a realidade candente de um povo sofrido. Podemos definir nosso guri como uma pessoa deficiente, em face de sua formação (ou deformação) social, e enquadrá-lo na proteção do art. 2º da lei n. 13.146/2015.

         Quais seriam as consequências daí decorrentes na hipótese de o guri causar uma infração criminal com consequências civis ou simplesmente ocasionar um dano civil? Estaria sujeito a suportar os encargos de uma condenação criminal? Mas, se é um excluído, pode ser responsabilizado pelo seu comportamento doloso ou culposo? Mais que isso, está obrigado a reparar o dano se não tem a plena consciência de sua situação social.

         Imaginemo-lo em um de seus “roles” em um shopping Center. Iludido pelas companhias, acompanha um grupo. Vê-se, então, envolvido em um arrastão. Nada apanha, porque ainda não tem a maldade dos demais maiores do grupo, mas, está junto e, pois, é coautor de um ato ilícito. Deslumbrado está com o colorido das lojas, com as roupas que o encantam, com a loja de brinquedos, com os tênis e sapatos que jamais viu, com a beleza das jovens que ali frequentam e com a praça de alimentação que nunca saboreou. Vê-se envolvido.

         Apurados os fatos, deverá ele ser internado em um centro de ressocialização? Para que servem tais casas se entrará em contato com outros menores já aperfeiçoados nos crimes e infrações. Será que não se aprimorará ou, então, entrará em contato com especializados no crime? Descambará mais ainda?

         Observe-se que é um jovem ainda puro. Vê a vida por um ângulo cruel, mas ainda sabe respeitar os humanos, embora não tenha o polimento civilizatório.

  1. O art. 928 do Código Civil e o art. 5º. da LIDB. A realidade supera a norma jurídica. A sócio antropologia jurídica. O menor de que vimos tratando é inimputável, a saber, ele não tem capacidade de entender o caráter ilícito do ato que pratica. Não foi preparado para isso. Não tem instrução. Não tem escola. Não tem família. Vive no meio de criminosos. Seus parâmetros comportamentais são outros. Não convive com a sociedade normal. Como ser normal e se sujeitar às punições da sociedade normal?

        Daí inaplicável é o art. 928 do Código Civil ao estabelecer que “o incapaz responde pelos prejuízos que causar”. Responde com quê? Nem o parágrafo único do mesmo artigo que dispõe que a indenização será equitativa, “não terá lugar se privar do necessário o incapaz”. Ora, ela já está privado de tudo. Aplica-se o art. 5º da LIDB pois o juiz deverá atender “aos fins sociais” a que a lei se dirige. Nem é caso de Tomada de Decisão Apoiada prevista no art. 116 da lei n. 13146/2015.

        Os comentaristas em geral não tratam da hipótese aqui exposta, porque se limitam a analisar a norma jurídica em seus aspectos sintático e semântico. Em tal situação, a realidade supera a norma. Mesmo a lei de inclusão da pessoa deficiente trouxe alguma novidade, como bem ressaltou o jurista José Fernando Simão (“Estatuto da Pessoa com Deficiência causa perplexidade – Parte I” conforma artigo publicado no Boletim de Notícias CONJUR de 6 de agosto de 2015).

          Infelizmente não temos espaço para discutir a sócio antropologia do direito e, então, lançar novas luzes sobre o enfoque a ser dado no estudo da questão do vulnerável. O direito positivo não alcança a questão ou contém lacunas. Seu preenchimento (colmatação) poderia ser dado pela antropologia. Estudar o ser humano em sociedade, nos diferentes graus de conflito e de desigualdade. É inadmissível equiparar desiguais. Misturar dados da realidade com as paixões que movem os seres humanos seria chegarmos a resultados estonteantes. Desvendaríamos a fatuidade das normas aplicáveis a apenas parte da sociedade.

           Constatada a fragilidade do ordenamento jurídico em abarcar inúmeras situações de fragilidade busca-se dar proteção aos vulneráveis (“Benoît Eyreaud e Pierre Vidal-Naquet, “La vulnéralité saisie par le droit”, “Revue Justice Actualités, 2013, págs. 3-10) ao arrepio das leis ou buscando interpretação mais favorável.

           Como diz Norbert Rouland (“Nos confins do direito” – antropologia jurídica da modernidade”, Martins fontes, 2008) “Não existem minorias em si: elas só se definem estruturalmente. São grupos postos em situação minoritária pelas relações de força, e de direito, que os submetem a outros grupos no seio de uma sociedade global cujos interesses são assumidos por um Estado, que opera a discriminação seja por meio de estatutos jurídicos desiguais (políticas de apartheid), seja graças aos princípios de igualdade cívica (privando de direitos específicos coletividades e cuja situação social e econômica é particular, a igualdade cívica pode criar ou perpetuar desigualdades de fato” (pág. 300).

        Em suma, o vulnerável descrito no corpo deste texto é inimputável, pois é incapaz de entender o caráter ilícito de seu comportamento no ambiente em que vive. É que não podemos ficar com o plano estático do ser; é imprescindível colocá-lo no fluxo da realidade. Apenas conhecendo aquele ser e penetrando em seu íntimo é que poderemos compreendê-lo em absoluto. E somente então é que podemos sobre ele fazer recair o ordenamento jurídico. É que ele está fora de sua incidência.

         Já foi sancionado em seu mundo; não pode sofrer outra punição. É apenar duas vezes a mesma situação através de dois ordenamentos normativos.

  1. O direito financeiro consertando realidades. Decisões trágicas. Como de verifica, não é possível ser sujeito passivo de duas sanções. Daí surge a norma reparadora. Há duas formas de justiça: uma é distributiva e alcança a comunidade; outra é corretiva e recai sobre indivíduos. Sabidamente a sociedade é dividida entre ricos e pobres, validos e desvalidos, hígidos e problemáticos. A sociedade é, por natureza, desigual. A primeira desigualdade resulta de causas naturais (psico-somática); a segunda é instituída pelos homens.

       Se a sociedade é desequilibrada, incumbe ao direito, à economia e à política transformá-la. O direito, nesse passo, é o instrumento formal. A política o instrumento essencial e a economia opera no meio do campo. Num primeiro momento verifica-se a existência de recursos financeiros. Através dos tributos e das receitas patrimoniais, o Estado deve verificar a existência de dinheiro para destiná-lo à realização de seus fins. Antes, ainda, opera para arrecadar receitas. Daí a finalidade instrumental dos tributos.

          Abastecidos os cofres públicos, o agente público decide onde realizar as despesas. Há uma fase decisória bastante complexa. É o que se chama de decisões trágicas. Os recursos são limitados e as necessidades públicas infinitas. Há uma escolha. O que deve ser atendido com prioridade? Se a sociedade é dividida entre ricos e pobres, dúvida não pode haver que a parte menos favorecida deve contar com a maior parte dos recursos.

          Ocorre que nem sempre é assim. Como os mais ricos que dominam os detentores do orçamento, a divisão não será tão justa como se pode desejar. É que o corpo deliberativo (Congresso Nacional integrado por duas casas: O Senado e a Câmara dos deputados) é igualmente desigual (oxímoro interessante!). A Casa Congressual é composta por integrantes de diversos partidos políticos, de todos os Estados da Federação. Ocorre que a escolha se faz por voto secreto, direto e universal. Mas, não nos percamos pela beleza gramatical da Constituição. A eleição, como é sabido, é manipulada não por falha das máquinas coletadoras dos votos, nem por defeito interno, mas por códigos de sedução. A ilusão da igualdade dos eleitores é patenteada pela captação viciada dos votos.

         A política é desequilibrada o que resulta em resultado privilegiado às classes mais favorecidas. Todos os partidores inserem, em seus estatutos, importantes declarações de apoio aos desvalidos. Ocorre que não são cumpridos em sua efetividade.

        As decisões de distribuição dos recursos financeiros se fazem através de sua destinação aos objetivos fundamentais de cada entidade federativa. A decisão trágica deveria deitar seus olhos nas imensas desigualdades sociais visíveis a olho nu no Brasil. Mas, não é o que ocorre. Os pobres continuam pobres. É um estigma perpétuo da realidade brasileira.

         É ao direito financeiro que cabe identificar as carências sociais, analisá-las através de agentes públicos e efetuar a deliberação do destino dos recursos.

        A decisão de como gastar cabe em primeira mão aos agentes do Executivo, passando, em seguida, ao Congresso Nacional que, através de sua Comissão Especial de Orçamento (composta por quarenta membros – trinta deputados e dez senadores) propor ao Plenário onde serão efetuados os gastos públicos. Claro que a apreciação do Plenário é meramente formal, porque todas as destinações já estão decididas e pactuadas entre todos os partidos.

       Não há, no interior da Casa Congressual um grupo de deputados e senadores preocupados com a destinação social do gasto. Subsiste o discurso vazio, as promessas não cumpridas. E a saga dos pobres segue seu destino, tal qual Édipo.

       Pode o direito financeiro, em tese, consertar as realidades pungentes do Brasil sertão e periférico? Em tese, os instrumentos existem. O problema são os operadores que não os utilizam de forma adequada.

       Vamos apenas a um exemplo: a cracolândia de São Paulo. Todos sabem a que me refiro. Ou, para não mencionar um caso tão extremo, fiquemos nos moradores de rua. Todos sabem de sua existência. Todos conhecem o problema. Todos o evitam. Todos passam longe. Todos têm medo de mencioná-lo. Esse é um câncer social e inúmeros governos tentam superá-lo sem lograr êxito. Ao contrário, o problema se agudiza. A todo ano cresce. A população passa fome, não tem banheiro, não tem privada, não tem onde morar, onde dormir e ninguém lhe estende a mão. O Estado fica longe dele. Vira de costas ou faz de conta que não é com ele.

      Livros candentes do desamparo social podem ser vistos em “Nossa senhora das flores” e “Diário de um ladrão”, ambos de Jean Genet. Vida pungente, dura, vivida nas prisões, na exploração sexual, na pobreza e na lata do lixo.

       A estes é que o direito financeiro deve voltar sua vista. Ficamos discutindo orçamento, verbas parlamentares, tribunais de contas, dívida pública, receitas e despesas, alíquotas, isenções, benefícios fiscais. Teorizamos sobre tudo isso, sem perceber que o que está por detrás da tragédia é o coitado que não tem o que comer. Dir-se-á que buscamos a regularização das ilicitudes para que sobre recursos a serem destinados aos mais humildes. Bons argumentos que nos imunizam ou ao menos nos insensibilizam ou nos anestesiam para que prossigamos nas mesmas análises de intermináveis e insossas discussões.

       O que vale mesmo é a dedicação sobre o destinatário das verbas públicas. É a ele que devemos voltar nosso olhar, ao menos de solidariedade. Mas, a verdadeira briga, o conflito real é a busca por destinação de recursos para os pobres.

       Alguém pode questionar que o Estado dirige e sua atenção deve se destinar a todos. Com razão e não duvidamos de tal afirmação. O que ocorre é que a classe rica ou não precisa do Estado ou, ao pelo menos luta para que o Estado não a atrapalhe. E o Estado não deve mesmo atrapalhar. Deve estimular os empresários a que produzam, que empreendam, que criem empregos, que se sintam atraídos com mais desenvoltura pelo crescimento do país. Daí não podem sofrer empecilhos. O desentrave burocrático deve tornar-se realidade. A racionalização dos tributos se impõe. Estamos de acordo com isso.

        O que não impede que voltemos os olhos para outra face de Juno. Ela quer amparar seus filhos. Certa feita visitando o Louvre deparei-me com um quadro denominado A República amamentando seus filhos. Há dois significados: ou ela amamenta os pobres ou os ricos e políticos que a sugam.

        O que se deve é fazer um esforço enorme para que os deputados (e senadores no âmbito federal) aloquem recursos e os destinem a obras de solidariedade.

        Nesse meio tempo vale a pena uma discussão sobre o salário-família, ou seja, a destinação permanente para a parcela mais desfavorecida do país. O governo federal, bem como os estaduais, distrital e municipais deveriam pensar em conjunto sobre o assunto. Impõe-se uma legislação a respeito que destine recursos mínimos a uma população até então desamparada e abandonada. Pode vir à lembrança a “Nau dos insensatos” de Sebastian Brant, livro escrito em 1494 que contém crítica acerba à sociedade da época, de cunho satírico e moralizante. Aponta os vícios da sociedade do tempo por suas falhas e vícios da nobreza e também do vulgo, não perdoando a justiça e todas as demais instituições, como igreja e universidades pelo cultivo da gula, da mentira, da indolência e, de forma geral, da desfaçatez com que se geria o dinheiro público. Inicia com uma advertência: “Que seja de utilidade e sirva de salutar ensinamento, de estímulo à conquista de sabedoria, juízo e bons costumes, assim como à emenda e punição da insensatez, cegueira, desacerto e inépcia dos homens e mulheres de todas as condições” (ed. Octavo, 2010, 1ª. Ed., pág. 21).

         Estamos, realmente, embarcados na nau dos insensatos. O mundo inteiro padece de insensatez e cegueira ao não ver as diferenças sociais e não tomar qualquer iniciativa para reparar os males.

      Nesse interregno a população continua na sua sofrência (no dizer de João Guimarães Rosa). A pungência do sofrimento não é sentia ou visualizada pelos bem acomodados na vida. As teses e dissertações que se escreverem sobre o direito financeiro deveriam vir pontuadas apenas com um ponto essencial: o ser humano.

          Esse é o destinatário das regras jurídicas. No campo do direito financeiro, o carente, o pobre, o analfabeto, o incapaz, a criança, os habitantes da periferia, os sem-teto, os desprovidos de inteligência, os imbecis de toda ordem, os idiotas, em sua pureza gramatical é que deveriam ser aquinhoados com os maiores recursos arrecadados pelo Poder Público.

      De tal forma é que se poderá reintegrar o vulnerável, a quem é destinado este texto, ao nosso mundo. Propiciar-lhe, em primeiro lugar, alimentação. Em segundo, eventualmente, família substituta, depois, roupa, sapato, meias, o mínimo de higiene, um pouco de cultura para que não permaneça analfabeto virtual, um pouco de compreensão e, talvez, um pouco de diversão. As crianças que nascem na periferia, em favelas são as que mais necessitam de apoio, de solidariedade.

        Tal é o caminho que o Estado deve seguir. Somente assim poderá fazer uma sociedade justa e solidária, tal como comanda a Constituição Federal.

*Regis Fernandes de Oliveira (Professor Titular aposentado da USP