Dispõe o art. 4º e parágrafo único da Lei nº 6.950/1981:
“Art 4º - O limite máximo do salário-de-contribuição, previsto no art. 5º da Lei nº 6.332, de 18 de maio de 1976, é fixado em valor correspondente a 20 (vinte) vezes o maior salário-mínimo vigente no País.
Parágrafo único - O limite a que se refere o presente artigo aplica-se às contribuições parafiscais arrecadadas por conta de terceiros.”
Contribuições parafiscais são aquelas destinadas ao Sistema S (Senai, Sesi, Senac e Sesc) que são entidades privadas. Por isso, a arrecadação é feita pelo órgão público e o produto de sua arrecadação é destinado ao Sistema S, cujos integrantes figuram como sujeito ativo da contribuição previdenciária. Daí o nome de contribuição parafiscal para diferenciar de contribuição destinada à Previdência Social.
Acontece que sobreveio o Decreto-lei nº 2.318/1986 cujos arts. 1º e 3º assim prescrevem:
“Art 1º Mantida a cobrança, fiscalização, arrecadação e repasse às entidades beneficiárias das contribuições para o Serviço Nacional de Aprendizagem Industrial (SENAI), para o Serviço Nacional de Aprendizagem Comercial (SENAC), para o Serviço Social da Indústria (SESI) e para o Serviço Social do Comércio (SESC), ficam revogados:
I - o teto limite a que se referem os artigos 1º e 2º do Decreto-lei nº 1.861, de 25 de fevereiro de 1981, com a redação dada pelo artigo 1º do Decreto-lei nº 1.867, de 25 de março de 1981;
II - o artigo 3º do Decreto-lei nº 1.861, de 25 de fevereiro de 1981, com a redação dada pelo artigo 1º do Decreto-lei nº 1.867, de 25 de março de 1981.
Art 3º Para efeito do cálculo da contribuição da empresa para a previdência social, o salário de contribuição não está sujeito ao limite de vinte vezes o salário mínimo, imposto pelo art. 4º da Lei nº 6.950, de 4 de novembro de 1981.”
Pergunta-se, os arts. 1º e 3º do Decreto-lei nº 2.318/1986 revogaram o teto de 20 (vinte) vezes do maior salário mínimo vigente no País para as contribuições devidas ao Sistema S?
Essa questão está sendo discutido na 1ª seção do STJ nos REsp nº 1.898.532 e REsp 1.905.870 sob a sistemática de recurso repetitivo (Tema 1079).
A Relatora, Ministra Regina Helena Costa, considerou que os arts. 1º e 3º do Decreto-lei nº 2.318/1986 promoveram a revogação do caput e do parágrafo único do art. 4º da Lei nº 6.950/1981.
Com o placar de 1 a zero pediu vista do processo o Ministro Mauro Campbell Marques interrompendo o julgamento.
Pelo que se depreende da sustentação oral realizada no dia do julgamento pelo advogado Fernando Facury Scaff, que defende os interesses da Cigel, não teria havido revogação do art. 4º, da Lei nº 6.950/1981, mas, apenas sua derrogação, isto é, uma revogação parcial, mantendo em vigor o parágrafo único do citado art. 4º.
Explicou que em outra oportunidade aconteceu a mesma coisa, isto é, antigamente as relações do trabalho eram regidas pelo Código Civil e, ao depois, essas relações passaram a ser regidas pela CLT. Nem por isso pode-se afirmar que o Código Civil foi revogado. As relações jurídicas não relacionadas com as relações trabalhistas continuaram sendo regidas pelo Código Civil.
A ilustração do nobre advogado não nos parece ser das mais felizes, pois, no caso, tratou-se de dois diplomas legais distintos: a CLT um diploma legal específico que deve prevalecer sobre as normas do Código Civil que é uma lei ordinária genérica.
No caso sob exame o caput e o parágrafo único compõem normas do mesmo diploma legal, a Lei nº 6.950/1981.
O Procurador da Fazenda Nacional, Leonardo Quintas Furtado, comparou a tese defendida pelo Professor Scaff ao poema “A Casa” de Vinícius de Moraes. Segundo esse Procurador da Fazenda o parágrafo único “não possui teto não possui chão e não possui parede”. “Trata-se de uma ruína normativa. O parágrafo único (do art. 4º da Lei nº 6.950/1981) apenas diz que o caput vai ser aplicado às contribuições parafiscais. Se a gente eliminar o caput, o parágrafo perde a sua função. Ele não tem o que expandir.”
À primeira vista impressiona-nos a fala do ilustre procurador Leonardo Quintas Furtado pela lógica do raciocínio desenvolvido.
Às vezes, o legislador, que não é sacerdote do direito, confere natureza autônoma a um parágrafo como se ele constituísse um outro artigo, embora debaixo do caput. Daí porque a azedada crítica do Procurador Furtado não se sustenta.
É muito raro, mas, às vezes, o legislador atribui ao parágrafo caráter de norma autônoma em relação ao caput, como aconteceu com o art. 9º da Lei nº 10.684, de 30/5/2003 que instituiu o parcelamento de débitos tributários em geral (Refis II) nos seguintes termos:
“Art. 9º É suspensa a pretensão punitiva do Estado, referente aos crimes previstos nos 1º e 2º da Lei no 8.137, de 27 de dezembro de 1990, e nos arts. 168A e 337A do Decreto-Lei no 2.848, de 7 de dezembro de 1940 – Código Penal, durante o período em que a pessoa jurídica relacionada com o agente dos aludidos crimes estiver incluída no regime de parcelamento.
- 1º A prescrição criminal não corre durante o período de suspensão da pretensão punitiva.
- 2º Extingue-se a punibilidade dos crimes referidos neste artigo quando a pessoa jurídica relacionada com o agente efetuar o pagamento integral dos débitos oriundos de tributos e contribuições sociais, inclusive acessórios.
Nos termos do art. 9º, o agente infrator que aderir ao Refis II é beneficiado,ipso facto,com a suspensão da pretensão punitiva do Estado. Porém, o Estado mantém a espada de Dâmocles na cabeça do contribuinte, pois fica suspensa, também, a prescrição criminal (§ 1º). Ultimado o pagamento integral dos débitos oriundos de tributos e contribuições sociais, inclusive acessórios, extingue-se a punibilidade desses crimes tributários (§2º).
A controvérsia doutrinária gira em torno desse § 2º. Alguns autores entendem que a extinção da punibilidade só pode favorecer aquele contribuinte-devedor que houver aderido ao Refis II, porque estatuída no bojo de uma lei que fixou prazo fatal para o exercício da faculdade de requerer o parcelamento dos débitos tributários (arts. 4º e 5º).
Quanto à natureza temporária do caput do art. 9º e de seu § 1º, dúvida não pode restar. A suspensão da punibilidade só ocorre durante o período em que a pessoa jurídica relacionada como agente dos crimes estiver sob o regime de parcelamento, e só pode estar sob esse regime, quem tiver requerido o benefício tempestivamente1. A suspensão da prescrição criminal, por sua vez, só ocorre enquanto suspensa a pretensão punitiva retromencionada.
Contudo, em relação ao § 2º não se pode sustentar sua natureza temporária, porque a extinção da punibilidade aí proclamada não está vinculada ao pagamento integral dos débitos tributários incluídos no Refis II. O texto refere-se, com lapidar clareza, ao pagamento integral dos débitos oriundos de tributos e contribuições, inclusive acessórios. Não mais existe a relação entre adesão ao Programa de Recuperação Fiscal e o pagamento final da parcela incluída nesse Programa, para a extinção da punibilidade, como estava no § 3º do art. 15 da Lei nº 9.954/00, que instituiu o Refis I.
Agora, o pagamento integral do débito tributário, a qualquer tempo, e independente de ser a última prestação de um parcelamento, extingue a pretensão punitiva do Estado. O legislador partiu para a completa despenalização na hipótese de pagamento integral do crédito tributário porque, nessa hipótese, o interesse público tutelado pela norma penal teria sido inteiramente satisfeito.
Dir-se-á que essa linha de interpretação, que se afasta da visão kantiana para apegar-se à corrente do utilitárismo, conspira contra o princípio da moralidade administrativa, à medida que pode encorajar a prática de atos fraudulentos, como aqueles tipificados nos arts. 1º e 2º da Lei nº 8.137/90, todos eles envolvendo condutas omissivas ou comissivas de natureza dolosa.
Acontece que, se o pedido de parcelamento do débito implica suspensão da pretensão punitiva, a qual ficará extinta com o pagamento da última parcela, seria uma iniquidade permitir o prosseguimento da ação penal em relação àquele que promover o pagamento integral do débito, de uma só vez, após o recebimento da denúncia. Se a razão da extinção da punibilidade está fundada no pagamento integral do tributo reclamado, não há como deixar de reconhecer a incidência do princípio da retroatividade da lei penal benigna, para reconhecer a extinção da punibilidade em todos os casos em que houver pagamento integral do tributo, independentemente do momento e das condições desse pagamento.
Esse posicionamento que sustentamos de forma pioneira em nossa obra, desde o advento da Lei nº 10.684/20032, restou pacificado na jurisprudência do STF que adotou a tese da despenalização dos crimes tributários ante o pagamento, a qualquer tempo, do tributo reclamado (HC nº 81.989/RJ e HC nº 83.414/RS).
Aquele posicionamento que adotamos e que restou acolhido pelo STF encaixa-se como luva ao caso sob exame.
O limite de 20 salários mínimos referido no caput do art. 4º, da Lei 6.950/1981 refere-se à contribuição devida à Previdência Social, ao passo que o parágrafo único versa sobre contribuições parafiscais arrecadas por conta de terceiros (Senai, Sesi, Senac e Sesc) que figuram como sujeitos ativos dessas contribuições.
Tanto é que o diploma legal superveniente, o Decreto-lei nº 2.318/1986 em seu art. 3º deixou expresso que “para efeito do cálculo da contribuição da empresa para a previdência social, o salário de contribuição não está sujeito ao limite de vinte vezes o salário mínimo, imposto pelo art. 4º da Lei nº 6.950, de 4 de novembro de 1981”. Nenhuma referência faz em relação às contribuições parafiscais arrecadadas por conta de terceiros. Daí a natureza autônoma daquele parágrafo único do art. 4º, da Lei nº 6.950/1981 que se encontra em pleno vigor. Aliás, ao teor do art. 3º do Decreto-lei nº 2.318/1986, o próprio art. 4º, da Lei nº 6.950/1981 estaria em vigor. E pela consulta feita à legislação do Planalto, o referido art. 4º figura como vigente.
Concluindo, embora haja uma tendência dos Ministros do STJ acompanharem o voto da Ministra Relatora, o posicionamento adotado pelo Professor Fernando Facury Scaff, no nosso modo de ver, é o mais acertado porque o parágrafo único do art. 4º, da Lei nº 6.950/1981 configura uma norma autônoma especificamente voltada para as contribuições parafiscais, tendo como sujeitos ativos entidades particulares integrantes do Sistema S, e não a Previdência Social a que alude o caput ou o art. 3º do Decreto-Lei nº 2.318/1986.
SP, 13-11-2023.
* Texto publicado no Migalhas, edição nº 5.727 de 14-11-2023.
1 O STF entendeu que a norma “do art. 9º da Lei nº 10.684/03, se aplica, indistinto, a todos os crimes tributários e a todas as formas de parcelamento, qualquer que seja o programa ou o regime que, instituído pelo Estado, sob este ou aquele nome, no exercício de sua competência tributária, possibilite o pagamento parcelado do débito tributário”. Com esse fundamento foi concedida medida liminar em HC mediante aplicação retroativa da lei geral e mais benéfica para determinar a suspensão da execução penal promovida contra o paciente (MC em Habeas Corpus nº 85.048-1 RS.Rel. Min. Cezar Peluso, DJ de 19-11-2004, p.40). No julgamento de 30-5-2006 a ordem foi concedida, DJ de 1-9-2006, p. 21)
2 Cf. nosso Direito Financeiro e Tributário, 31ª edição, 2022, p. 1068-1070.