FONTE: CONJUR

Dias atrás, em uma prosa descompromissada, ouvi de um colega da Universidade Federal do Paraná a expressão “parlamentarismo financeiro” para se referir ao momento em que vivemos. Achei a expressão muito interessante e fui investigar.

Constatei que, pouco a pouco, dois mecanismos financeiros transferiram grande parte do controle das finanças públicas do Poder Executivo para o Poder Legislativo, modificando o jogo de forças político. Trato das emendas parlamentares e o financiamento público de campanhas eleitorais.

Para entender o debate sobre as emendas parlamentares é necessário considerar que grande parte do orçamento é engessado, pois as despesas obrigatórias são gigantescas e dificilmente podem ser reduzidas — dentre elas, o pagamento dos elevadíssimos juros da dívida pública. Logo, as emendas parlamentares incidem sobre o montante livre (discricionário) do orçamento, que é proporcionalmente pequeno, colocando-o sob controle do Poder Legislativo, que o utiliza de forma pouco republicana, isto é, no interesse geral da sociedade.

2015

pai da criação dessas emendas foi o ex-deputado Eduardo Cunha, que então presidia a Câmara dos Deputados, e, por conseguinte, o Congresso, que comandou a aprovação da EC 86, em março de 2015, acrescendo o §9º ao artigo 166, tornando as emendas individuais de obrigatória execução orçamentária, o que ensejou uma irônica coluna neste espaço na qual fiz paralelo com a frase de Sobral Pinto acerca da “democracia à brasileira”. Neste passo, foi capturado o montante de 1,2% da receita corrente líquida da União, tornando obrigatória a realização dessas despesas e reduzindo o espaço discricionário do orçamento.

Em junho de 2019, o então presidente da Câmara, ex-deputado Rodrigo Maia, patrocinou a aprovação da EC 100, que tornou obrigatória a execução orçamentária das emendas de bancada, ao introduzir o §12 ao artigo 166, com nova captura de mais 1% da receita corrente líquida federal.

Novamente patrocinada por Rodrigo Maia, em dezembro de 2019 foi aprovada a EC 105, introduzindo o artigo 166-A, que criou duas diferentes modalidades de transferência de recursos, a especial e aquelas com finalidade definida, que passaram a ser denominadas de emendas pix, pois permitem que os recursos sejam transferidos diretamente ao município ou ao projeto indicado pelo parlamentar.

2022

Em dezembro de 2022, o atual presidente da Câmara, Arthur Lira, promulgou a EC 126, ampliando o percentual destinado às emendas parlamentares individuais para 2% da receita corrente líquida da União, dispondo sobre o rateio desses valores entre Câmara e Senado, e regulando o procedimento de restos a pagar relativos a tais emendas.

Parte dessas emendas compuseram o orçamento secreto, por meio do qual não se sabia ao certo quem mandava gastar os recursos públicos orçamentados.

O PSOL ingressou com a ADI 7.697, alegando a inconstitucionalidade dessas EC’s, que obteve liminar concedida pelo STF em agosto de 2024, sob relatoria do ministro Flávio Dino.

Deste ponto em diante ocorreram diversas reuniões de cúpula dos dirigentes de nossa República e, ao que tudo indica, sem grandes efeitos práticos, tanto que o espantoso número de 98% dos prefeitos mais turbinados com emendas se reelegeram, segundo a Folha de S.Paulo.

Como hoje se afiguram, estas emendas se transformaram em uma espécie de programa de transferência de renda aos parlamentares, semelhante ao Bolsa Família, mas com outros valores e objetivos.

Isso cria, dentre outros fatores, uma confusão conceitual para a compreensão do sistema. É óbvio que a chave dos cofres públicos tem que estar no Poder Legislativo, que tem o dever de destinar e controlar a despesa pública, mas isso deve ocorrer no interesse geral da sociedade, e não no interesse particular de cada parlamentar. Tal como está desenhado, tornou-se uma espécie de bolsa-parlamentar para custear seus interesses eleitorais particulares, que podem ou não estar em conformidade com interesse geral da sociedade.

Por outro lado, o financiamento público de campanhas eleitorais foi fortemente turbinado desde sua reimplantação no país pela Lei 13.487/17, por meio do Fundo Especial de Financiamento de Campanha (FEFC). Desde então esse Fundo repassou aos partidos políticos os seguintes valores:

Eleições gerais em 2018: R$ 1,7 bilhão
Eleições municipais em 2020: R$ 2,0 bilhões (aumento de 18,57%)
Eleições gerais em 2022: R$ 4,9 bilhões (aumento de 40,79%)

Antes, com o financiamento privado das campanhas políticas, os candidatos passavam o pires para que as empresas bancassem seus gastos eleitorais e a elas ficavam atrelados; agora, os candidatos ficam submetidos aos chefes dos partidos políticos, que distribuem os recursos ao seu bel-prazer, sem prestar contas à sociedade, pois o uso desses valores é de sua exclusiva competência, sendo que os partidos possuem baixa transparência e governança, conforme analisado anteriormente.

Expostos os fatos, chega-se às seguintes constatações: 1) há baixo índice de republicanismo em nosso país, pois os recursos públicos livres (discricionários) foram capturados e vem sendo usados pelos parlamentares consoante seus interesses particulares, e nem sempre objetivando interesses gerais da sociedade 2) está havendo aumento do clientelismo, pois só serão eleitos aqueles em que a cúpula partidária investir; e 3) quem manda nas finanças públicas, manda no país, logo, o cargo de Presidente da Câmara tornou-se, na prática, o de 1º Ministro do Parlamentarismo Financeiro brasileiro.

É necessário reescrever os manuais de Teoria do Estado, de Direito Constitucional e de Direito Financeiro para acrescer esta figura jurídica que foi construída no Brasil, a do Parlamentarismo Financeiro.

Fernando Facury Scaff
é professor titular de Direito Financeiro da Universidade de São Paulo (USP), advogado e sócio do escritório Silveira, Athias, Soriano de Mello, Bentes, Lobato & Scaff – Advogados.