Crédito: Publicado em 06/12/20 por Renato Nalini em seu blog
Um dos nítidos sintomas de que o declínio dos valores contaminou a vida contemporânea é a agonia da gratidão. Essa virtude já esteve no pódio, mas hoje agoniza. O culto ao poder, à autoridade, à fama e ao dinheiro prevalecem de forma absoluta. A praxe é deletar qualquer contribuição alheia, que um dia serviu para ajudar o nosso crescimento.
Faz lembrar o episódio atribuído a Napoleão, em pleno ostracismo. Ao saber que alguém invectivava contra ele, teria afirmado: – “Não me lembro de ter feito a ele qualquer benefício!”. Pois uma das explicações psicológicas para a ingratidão é lembrar ao ingrato que ele um dia esteve na condição de ser ajudado. Isso provoca má lembrança, convertida em ressentimento.
Porém – felizmente há sempre um porém – há exceções. Elas podem servir de inspiração aos mal agradecidos. Lendo o livro “Pensadores que inventaram o Brasil”, de Fernando Henrique Cardoso (Cia. das Letras), constato que o respeitado scholar, sociólogo de consistente trajetória intelectual e que chegou à Presidência da República, sabe reconhecer a influência de seus mestres.
Sem perder o rigor da análise, impregna o conteúdo acadêmico de sensibilidade e afeto. Assim é que se refere aos pensadores com os quais conviveu: “Antonio Cândido, eu disse, já era famoso. Famoso era o crítico literário. E benquisto era o esplêndido professor. De avental branco – impecável – como os professores de sociologia usavam na época, Cândido, sempre discreto e charmoso, deslocava-se rápido pelos corredores para a sala de aula. Cortês e algo distante – quase formal – , explicava com clareza a barafunda sociológica que nos deixava fascinados e atônitos”.
Mais adiante: “Àquela altura, por volta de 1951, já havia alcançado certa intimidade com Antonio Cândido e Gilda. Eles moravam na rua dos Perdões, na Aclimação. Nome apropriado o da rua: eu deveria ter feito a cada vez que fui visita-los o que faço agora, pedir mil perdões pelo abuso do tempo nas conversas espichadíssimas que tínhamos. Candido é um causer formidável”.
Ao oferecer seu testemunho sobre um dos mais respeitados brasileiros do século XX, Fernando Henrique é o aluno respeitoso, não o célebre pensador que teria todas as condições de se considerar superior a seus mestres: “Mas não cabe neste depoimento fazer análises intelectuais. Quero apenas deixar registrado, como ex-aluno, ex-colega e permanente admirador, meu apreço por Antonio Cândido”.
Não é somente apreço o que deixa registrado, mas algo que enriquece a biografia do homenageado: “É esse o Antonio Candido que eu admiro. O Antonio Candido que pôs em prática o que nosso saudoso amigo Cândido Procópio Ferreira de Camargo gostava de dizer (e de praticar) sobre a educação jesuítica: que ela ensina a esconder as virtudes. Antonio Candido é um corajoso. Antonio Candido é um erudito. Antonio Candido é um grande professor. Antonio Candido, sobra dizer, é o intelectual por excelência. E é também, a seu modo, um militante. É tudo isso com discrição; carioca-amineirado, está presente onde é reclamado com ar de quem pede desculpas; carrega até na pronúncia acaipirando-a às vezes, para melhor disfarçar o que é: homem do mundo e, por isso mesmo, tão marcadamente localizado. Outro igual a Antonio Candido, só mesmo terminando à la Garcia Lorca: custará muito a nascer”.
É uma lição para as novas gerações e que sirva de inspiração para quantos esqueceram seus mestres, não apenas os que exerceram a docência formal, porque mestres são aqueles que, com seus exemplos, contribuem para nos lapidar.
Sou de uma geração em que ainda se cultivava o hábito de saudar carinhosamente a professora. Desde o antigo primário, até o ginásio e colégio. Até mesmo na Faculdade de Direito, os alunos disputavam o privilégio de fazer uma breve oração, ao início das aulas, na semana em que se comemorava o Dia do Professor.
A inolvidável Esther de Figueiredo Ferraz, primeira Reitora de Universidade no Brasil, primeira Ministra da Educação, depois de ter sido a primeira mulher a atuar no Tribunal do Júri, recordava com emoção o iniciar de sua carreira no Magistério. Sala de roça, em que o alunado humilde a acarinhava com uma flor, com uma laranja, com um bilhete ou com um beijo. Depois de acumular láureas, era essa a recordação que enternecia o seu coração e que mantinha viva em seu jardim de memórias.
No afã de obter titulação, com a multiplicação de pós-doutorados e outros itens destinados a densificar o Lattes, há muitos estudiosos que se esquecem de que gratidão também merecia estar no pacote de conquistas.
Na verdade, contar com a lembrança carinhosa dos alunos é o factível galardão dos professores. Antonio Candido viu acrescido ao seu ciclópico acervo de titulações, o prêmio insólito, raro e precioso, de contar com um Fernando Henrique Cardoso como seu discípulo.