DIREITO DO TRABALHO E A CRISE DO DIREITO
Tempos de Pandemia
Francisco Pedro Jucá. 1
Sumário:
- Introdução e Referências.
- Formas de adequação normativa. I
- Regulação Jurídica e o Novo Mundo do Trabalho.
- Conclusão
Resumo: As alterações aceleradas e explosiva do processo de produção e organização da economia, com a incorporação imediata e permanente de tecnologia, causam mudança radical no mundo do trabalho, oferecendo desafios enormes. Tais desafios podem ser enfrentados com a utilização da hermenêutica conforme a constituição das normas infraconstitucionais, a partir dos princípios expressos no texto constitucional, colmatando a unidade, harmonia e coerência interna da ordem jurídica, fortalecendo a eficácia social para as soluções encontradas ou construídas.
Abstract: The accelerated and explosive changes in the production and organization process of the economy, with the immediate and permanent incorporation of technology, cause radical change in the world of work, offering enormous challenges. Such challenges can be faced with the use of the hermeneutic according to the constitution of infraconstitutional norms, based on the principles expressed in the constitutional text, bridging the unity, harmony and internal coherence of the legal order, strengthening the social effectiveness for the solutions found or constructed.
Resumen: Los cambios acelerados y explosivos en el proceso productivo y organizativo de la economía, con la incorporación inmediata y permanente de la tecnología, provocan un cambio radical en el mundo del trabajo, ofreciendo enormes desafíos. Dichos desafíos se pueden enfrentar con el uso de la hermenéutica de acuerdo a la constitución de normas infraconstitucionales, con base en los principios expresados en el texto constitucional, tendiendo un puente sobre la unidad, armonía y coherencia interna del orden jurídico, fortaleciendo la efectividad social para las soluciones encontradas o construidas. Palavras chave: Mudança Tecnologia. Mudança das relações de trabalho. Dificuldade Legislativa. Papel fundamental da hermenêutica conforme a constituição. Dignidade humana e bem estar geral.
-
Introdução e Referenciais
A introdução que qualificamos como breve procura fixar o tema proposto, orientando o perfil da abordagem que será dada e, de certo modo, explicitar o caminho metodológico que se usa.
Vivemos um tempo de crise, aguda e complexa, seja pelas mudanças econômicas que se vinham desenrolando, seja pela superveniência da pandemia de COVID 19, que a um só tempo provocou impacto não apenas na saúde pública, mas e sobretudo, explicitando as fissuras e incompletudes existentes na sociedade e na economia, que eram preexistentes e em certo grau latentes. Temos que tudo muito mais emergiu, veio à luz, do que surgiu, no sentido de que passou a existir.
O quadro é de crise, os paradigmas utilizados na e pela ordem jurídica são de normalidade. O desencontro e a quase contradição entre ambos desafia a construção de uma resposta do direito ao quadro que seja útil e eficaz, obrigando, em nosso ver, a elaboração de um direito de crise para a crise, porém concomitantemente existindo com uma crise do direito, o que forçosamente conduz à reflexão de construção normativa, edição de normas próprias, mas, também, à construção de uma hermenêutica compatível com as necessidades postas, num conjunto harmonioso que possibilite a superação da natural conflitividade social que se acentua em momentos como o que vivemos.
Vamos entender a ideia de crise como a situação em que o velho não consegue morrer e o novo não consegue nascer. Sugere tanta perplexidade como impasse, porém o próprio processo histórico precipita o desfecho, fazendo com que na superação do antigo venha o surgimento do novo, quase sempre como um processo transicional, porquanto a ruptura pura e simples, que sugere a mudança radical e imediata, não tem a capacidade de produzir efeitos adequados em tempo útil, isto é, não é capaz de oferecer a solução pretendida ou necessária.
Constatamos que o momento vivido é de crise sim, entretanto, sem otimismo ingênuo, tem o aspecto bem mais de dores do crescimento do que outra coisa. A compreensão do fenômeno tem apresentado a dificuldade de não se ter, ainda, a visão suficientemente clara do que foi superado e precisa ser substituído (necessariamente), mais do que precisa ser apenas alterado em adaptação nem do que precisa ser inovadoramente criado ou construído. É certo que o quadro ganha gravidade quando se usa os paradigmas e referências tradicionais para tratar do problema. A propósito, não é certo sequer que os paradigmas tradicionais possam ser úteis para problematizar a questão, tornando possível responder/resolver.
A ordem jurídica foi construída e evoluiu a partir de uma organização social com características de grandes parcelas sociais mais ou menos homogêneas, com interesses mais ou menos delimitados e definidos, em diálogo posto e estável com outros interesses também mais ou menos homogêneos e, da mesma forma, mais ou menos delimitados e definidos. Tudo concertado num sistema já bastante consolidado pelo tempo e que foi capaz de manter-se operativo através de mudanças ou alterações pontuais e circunstanciais, que promoveram os ajustes compatíveis com os referidos interesses em diálogo.
A disrupção que vivemos e que está em curso, cujo sentido não se afigura suficientemente claro, materializa-se na desconstrução dos grandes blocos homogêneos, que foram substituídos por uma fragmentação que se vem desdobrando ao infinito, revelando interesses particulares em cada parte em que se desdobra, formando um caleidoscópio complexo. Marca, ainda este painel de mudanças o fato de que estes interesses emergentes têm duração muito curta, passando por constante mutabilidade, deixando tudo muito instável: mal as coisas começam a ser, deixam de sê-lo, passando para a etapa seguinte.
Sem dúvida tudo muito assustador, impactante. Porém, forçoso é admitir a capacidade humana de adaptar-se para sobreviver, aplicando-se tal também ao processo cultural, do qual nos ocupamos.
O grande desafio posto é o da ressignificação das coisas a partir dos traços comportamentais das gerações presentes, bem diversos das anteriores, com aspirações, desejos e projetos bem distintos dos existentes, especialmente no que respeita ao consumo de bens e serviços, formas de acumulação e utilização do tempo, tudo se refletindo, naturalmente, no processo de produção, na organização da economia. Há, ainda, que considerar a imparável influência determinante da tecnologia que a um só tempo surge e é imediatamente incorporada à vida cotidiana, à normalidade da convivência e que, como tem dinâmica evolutiva própria e obsolescência precoce, desenha uma sequência de superação após superação, num quase infinito atordoante. Dois são os pontos fundantes de processo que se descreve, a fragmentação social, com a substituição dos grandes grupos homogêneos por uma infinidade de grupos menores e a fugacidade de todas as escolhas, com duração temporal muito pequena e de transitoriedade quase permanente.
Claro que neste quadro, que é tanto estrutural, porque a organização mesmo da sociedade sofre tais mudanças, quanto conjuntural, porque as circunstâncias e suas situações consequentes são, cada vez mais, aceleradamente mutáveis, as construções das instituições sociais sofrem abalo significativo, encerrando séria dificuldade para a formulação das questões e suas respectivas resposta, inclusive atentando que o tempo útil de tudo isso é severamente encurtado.
Nestes tempos de dificuldades e instabilidades, obviamente que a construção, manutenção e efetivação de uma ordem jurídica é tarefa desafiadora, mas, ainda assim, inelutavelmente imperativa, até mesmo para a sobrevivência da sociedade, fazendo lembrar o que disse George Burdeau, ao tratar do poder político na abertura do 6 seu Direito Constitucional e Instituições Políticas 2 : “Toda a sociedade se ordena em torno de um ideal determinado de vida em comum, que se desenvolve dentro de um estado de consciência nascido da solidariedade pelas quais seus membros sentem-se unidos.”
A questão está em primeiro identificar e caracterizar este sentimento social de solidariedade agregadora, num conjunto profundamente marcado pelo individualismo exacerbado; depois em como perceber com clareza o processo interativo destes individualismos (egocêntricos) presentes nos pequenos grupos, quase tribais, fechados em si, hostis ao diferente, quase confundindo a competição com a confrontação excludente, ainda que irracional e improdutiva.
A construção da ordem jurídica acontece a partir da formação de consensos paradigmáticos materializadores da ideia (representação) de direito e de justiça, que são vigentes na sociedade em determinada etapa de seu processo histórico. Desde estas representações concretizadores de referenciais éticos, porém necessariamente submetidos à obrigatoriedade do pragmatismo e da afinidade essencial com a realidade concreta e posta é que se elaboram os mandamentos reitores da organização social e da disciplina das relações internas da sociedade, tanto entre os indivíduos, como entre os grupos que a compõem, resultando em uma ordem estabelecida com relativa estabilidade nos seus pontos fundamentais de sustentação e com capacidade de adequação nos demais pontos ou aspectos, sempre, todavia, guardando coerência e afinidade com os aduzidos pontos fundamentais.
Não resta dúvida de que é um quadro difícil. Difícil é fato, porém não insuperável. É o que vamos tentar entender, considerando as categorias de permanente e transitório, adaptativo e temporário, permanente (relativamente) e de preservação obrigatória.
Não se está aqui a cogitar da convivência de duas ordens simultâneas, mas da substituição temporária, com limitações rigidamente definidas e conexas às circunstâncias extravagantes, que uma vez superadas ou absorvidas retornam ao leito normal. Noutras palavras, temporária e em circunstâncias precisamente definidas e delimitadas, a ordem normal e permanente abre espaço controlado à outra compatível com a excepcionalidade, retomando depois à posição anterior, o que significa dizer, albergando uma regulação excepcional para a situação excepcional, preservando seus efeitos, validade e eficácia, em homenagem à segurança jurídica e à estabilidade social que ela gera, fazendo retornar a regulação normal quando da volta da normalidade, estabelecidos mecanismos objetivos e claros do período convivencial entre ambas.
Daí admitir-se que a ordem jurídica comum e normal sofra alterações, até importantes circunstancialmente, exatamente para tentar responder às situações novas, como soe acontecer nos momentos de crise. Isto significa admitir a convivência entre um direito normal e comum e um direito extraordinário, para situação igualmente extraordinária.
Mas quando consideramos, como o fizemos antes, que se pode ter a existência de duas crises, uma a crise de circunstância; porém, outra, uma quase permanente, que vem impor alterações à ordem normal ou tradicional, consiste em imperativo a realização das mudanças necessárias para acolher os novos tempos e os novos fatos, que se vão incorporando à nova normalidade, pelo menos durante um determinado lapso temporal.
O quadro com que introduzimos esta brevíssima reflexão tem como campo de observação o imperativo de mudanças frequentes em aspectos muitas vezes relevantes da ordem jurídica, para atualizá-lo, mantendo-o operante, ao lado de outro imperativo, o de episodicamente impor o surgimento de uma ordem paralela e temporária, com fins específicos de atender à necessidade também transitória, com a observação importante de 8 que não raro a ordem permanente acabar por incorporar pontos da ordem transitória, mudando o sistema com estas incorporações. Claro que tudo isso torna o conjunto mais complexo, mas a complexidade precisa ser enfrentada, até mesmo pela necessidade social de se preservar o sistema de controle social que o direito é.
2. FORMAS DE ADEQUAÇÃO NORMATIVA
O curso dos fatos na sua velocidade própria impõe a constante adaptação do sistema de controle social, isto significa que o direito adquire uma nova dinâmica, que inclui tanto a sua elaboração e expressão, como também a sua hermenêutica. Isto decorre da pluralidade de situações, da acentuada diversidade entre elas, do surgimento de cada vez mais peculiaridades em situações concretas.
É fato que nunca o direito foi estático, porém ele tem em si a presunção de permanência em busca da estabilidade das instituições, a mudança pela qual passamos diz respeito ao tempo. Temos que permanecem as concepções de permanência e estabilidade, de manutenção situacional, porém, a leitura que se impõe se altera. Isto porque as situações são, cada vez mais, mutáveis e o são em velocidade acentuada, gerando a demanda do que podemos chamar de adaptação normativa regulatória.
Claro que tudo isso enseja uma atividade legiferante mais intensa e com sintonia mais fina, porém se percebe com clareza a existência de um delay entre a capacidade legislativa, que demanda a formação e estabelecimento de consensos políticos, e as demandas surgentes. Defendemos que, para atender a essa necessidade, a alternativa viável é recorrer à hermenêutica do sistema normativo, porém, sempre e indeclinavelmente, a partir dos limites sistêmicos da constituição, utilizando extrair 9 soluções e respostas nos princípios, enunciados inscritos no texto constitucional. Mas esta hermenêutica não pode em nenhuma hipótese estar direcionada pelo subjetivismo e discricionariedade do intérprete, diversamente, há de curvar-se aos mesmos princípios, atentando para seu conteúdo e significado e buscando os efeitos máximos de aplicabilidade, mais ou menos como Konrad Hesse denominou nos seus Escritos de Direito Constitucional, de máximo efeito da norma constitucional.
Cumpre lembrar a esta altura, que a Constituição dá a legitimação forma de ordem jurídica, que é construída a partir dela, porém, mais do que isso, no constitucionalismo contemporâneo vai mais além, orienta a interpretação da ordem jurídica, dá o sentido norteador do sistema no seu conjunto, porquanto desempenha o papel de unificadora e coerência interna do sistema, dando-lhe a identidade, eis que fundada na concepção de direito e justiça (conteúdo e significado) vigente na etapa histórica da sociedade, formulados pelo consenso estabelecido pelas forças sociais atuantes na organização da sociedade e das suas instituições.
Desta forma a Constituição direciona a interpretação e a aplicação do direito infraconstitucional, eis que este há de ser aplicado em conformidade com a constituição, não apenas nas grandes decisões de repercussões sociais alargadas, hard cases, mas em toda e qualquer interpretação e aplicação da ordem jurídica na casuística concreta da vida social.
A formulação que se esboça alcança a toda a ordem jurídica (afinal é uma só), e assim o entendemos porque estamos entre aqueles que compreendem o direito positivo como uma ordem única organizada sistematicamente, com coerência interna, unificada pela base constitucional e suas variações nada são além de plasticizações desta mesma ordem, que ajusta parcelas a campos da vida social com características próprias, porém estas especializações não significam autonomias senão metodológicas, sob pena de ruptura da unidade e coerência que nos referimos.
Esta visão de sistema único vai além de raiz comum e única, materializando a necessidade de diálogo intrassistêmico, no qual os “diversos ramos” dialogam e ao o fazerem se completam, aperfeiçoam e caminham na mesma direção.
Com esta formulação é possível a visão transversal e transdisciplinar que propomos para todo o direito, porquanto as soluções necessárias podem ser encontradas se consideradas as diversas formulações que existem no sistema, assim, um contribuindo com o outro e as respostas sociais sempre são fruto da conjugação do sistema na sua inteireza.
É preciso levar em conta que os diversos institutos jurídicos não podem ser considerados isolados, porque não o são, ao contrário, existem e produzem efeitos dentro de um sistema, interagindo entre si. Portanto, exemplificativamente, ao nos debruçarmos num caso concreto, é necessário considerar as diversas incidências normativas sobre ele porque inexiste incidência única. Toda a vida social está envolvida no que podemos chamar de malha normativa, mais explícita ou mais sutil, porém real e os elos desta malha operam efeitos simultaneamente e precisam ser considerados, sob pena de construir-se o equívoco de uma hermenêutica contraditória e distorcida, o que não é aceitável.
O que nós denominamos de normatividade sistêmica é que tem a função, desempenha o papel de regular as relações na sociedade, porém, como tais relações acontecem inseridas num contexto em permanente interação com outras relações, direta ou indiretamente, da mesma forma, a regulação precisa alcançar a todo o universo atinente à relação, porque precisa levar em consideração as conexões existentes no universo onde acontecem os fatos.
Em termos mais concreto e exemplificativos, podemos examinar a relação de trabalho e vamos constatar que ela acontece em interação com relações de direito 11 econômico e concorrencial, se enfocarmos a figura do empregador, ou como o denomina o direito italiano il datore di lavoro, mas esta mesma relação interage em relação fiscal/tributária, porque empregador e empregado são sujeitos passivos na relação jurídica tributária; da mesma maneira está articulada a relação previdenciária, com a relação de consumo, com as relações de direito administrativo, porque sempre há exercício do poder de polícia sobre as atividades humanas.
Neste breve exemplo ilustrativo procuramos demonstrar que somente se compreende uma relação jurídica /social determinada, compreendendo a sua inserção no conjunto à que pertence e no qual acontece, percebendo assim, a pluralidade das incidências normativas diretas e indiretas, daí porque se defende que a formulação da solução do problema concreto há de se ajustar e se inserir no sistema a que nos referimos. Assim poderemos ter o ajuste mais adequado.
A relação entre o fato e a norma, bem como a compreensão e interpretação dela, obrigam a que reconheça a pluralidade das incidências normativas, já que a visão isolacionista porque incompleta, não nos dará a melhor solução.
O emolduramento mais amplo dos fatos no sistema, como já o referimos antes, está gizado na Constituição, porquanto nela se encontram as linhas gerais da organização da sociedade e da sua economia. É apontado o sentido para a disciplina jurídica dos fatos e atos que ocorram e, naturalmente, são dados os parâmetros hermenêuticos orientados obrigatoriamente para os princípios fundantes da ordem jurídica, do estado e da organização da sociedade.
Com efeito, se considerados estes aspectos, o hiato entre a demanda social dos novos modos de convivências a que nos referimos ao início, a capacidade operacional legiferante pode ser minorada substancialmente, mantendo a operacionalidade do sistema até que seja ajustado e atualizado o direito positivo.
Em nenhum momento se admite tratar-se de tarefa simples e fácil, bem ao contrário, espinhosa e complexa, mas, se se recorre ao arsenal teórico disponível de maneira adequada, com o cuidado e a serenidade necessários, é tudo plenamente factível.
Neste arsenal teórico que envolve recursos sociológicos, econômicos, políticos e mesmo filosóficos, existem elementos para possibilitar a compreensão mais apurada da realidade e das circunstâncias e, em consequência, buscar no arsenal da ordem jurídica a incidência normativa mais adequada. Um aspecto, porém, é indeclinável, em nenhum momento será razoável desconsiderar o direito positivado, afinal a lei, a norma posta, além de objeto e ponto de partida para a hermenêutica, é também seu limite intransponível. A hermenêutica gera respostas e soluções concretas, não pode e nem deve inovar ou acrescer a ordem jurídica, admiti-lo seria avançar sobre a formulação da organização política no que respeita à repartição de poderes e competências em que o Estado está organizado, causando grave dano ao sistema, antes agravando do que resolvendo problemas. Há que ter extremo cuidado e contenção, beirar mesmo ao minimalismo.
É neste contexto que se defende o permanente diálogo interativo e cooperativo das fontes do direito: as estatais, as negociais derivadas da autonomia da vontade coletiva ou individual, e mesmo as produções da experiência de aplicação da ordem jurídica à concretude da vida social que está da jurisprudência. Deste diálogo, tal como se o sugere, é que se pode extrair as melhores soluções, porém sempre compreendido no conjunto, sistemicamente, norteados pelos princípios constitucionais.
Isto significa a leitura das normas positivadas em consonância e à luz dos princípios fundantes da organização constitucional, na qual em síntese está posta a centralidade dos direitos fundamentais e da dignidade humana, que orientam tanto a produção normativa e sua aplicação, como também a formulação e execução de políticas 13 públicas, além da eleição e prestação dos serviços públicos. Tudo tendo sempre como centro de gravidade o estatuto constitucional.
Tanto os reflexos do quadro que se debuxa, quanto a construção jurídica pertinente merecem atenção especial ao enfocarmos as relações de trabalho, sendo forçoso reconhecer nelas conteúdo humano pronunciado, com pluralidade de significação econômica, social, produtiva, de qualificação humana, de identidade e de desenvolvimento humano.
Vamos centrar a reflexão que se faz nas relações de trabalho e na sua tela jurídica, considerando que as mudanças estruturais e conjunturais, cada vez mais aceleradas e severas, vêm produzindo enorme impacto. O mais significativo deles e que não é exatamente novo diz respeito ao modo da divisão social do trabalho, que trouxe importante dificuldade na formulação de uma tutela jurídica minimamente eficiente, porque é impossível sejam utilizados os paradigmas e referências tradicionais para os novos modelos de realização do trabalho, principalmente na forma como se vem estruturando os novos modos de produção, especialmente no que respeita ao setor terciário, porquanto a prestação de serviços vem sofrendo o que podemos chamar de pulverização, na medida em que se multiplicam os tomadores de serviços, e surge forte um sistema de intermediação e agenciamento, que se ocupa da articulação entre tomadores e prestadores de serviços, imperando, aí, características de assunção de risco da atividade por que trabalha e ausência de parâmetros remuneratórios, que flutuam guiados pelas leis de mercado, despidos que qualquer conotação humana, revivendo-se os primórdios do processo industrial na Europa, da virada dos séculos XIX para o XX.
Doutro lado, o insumo trabalho na composição dos custos de produção da atividade empresarial tem um significativo desequilíbrio, porque a equação das relações do sistema com o Estado está toda lastreada em referências quase que completamente superadas.
O significado social do trabalho, o papel de inserção e qualificação social e seus reflexos também sofrem mudanças igualmente severas, mas é possível notar a convivência de referências tradicionais com aquelas que vem sendo construídas mais recentemente. Este dado, que tem significado econômico, deita suas raízes na alteração de cultura das novas gerações, que vem apresentando uma visão de mundo bem diferente daquele de gerações imediatamente anteriores, num misto de conformismo e redução de horizontes, e mesmo com a substituição de valores vivenciais.
Tais alterações, que vão além da chamada economia 4.0, que vislumbra apenas a permanente e acelerada incorporação de tecnologia a todos os processos de produção, circulação e consumo, mas vai até as referências da produção cultural, os padrões de consumo, da reformulação até mesmo das relações sociais, escapam da malha jurídica tradicional e, se não estão num vazio, certamente estão inseridas no que se pode considerar como sendo um desvão do sistema, em cuja permanência se apresentam inúmeros problemas existenciais, que trazem consequências diretamente aos indivíduos, é fato, mas repercutem fortemente na sociedade em geral.
Nota-se cada vez mais claro e mais forte um conjunto de efeitos daí decorrentes no mundo do trabalho, sua organização e funcionamento, alcançando inclusive os atores do diálogo social necessário e inerente ao mundo laboral, porquanto as organizações sindicais vão gradativamente perdendo as referências de aglutinação tradicionais e estão tendo enorme dificuldade em identificar e adotar novas, o que se manifesta na forma de perda de representatividade, sendo forçoso reconhecer que mudaram tanto os representados, seus interesses, aspirações e objetivos, quanto o modo de externalização disto, enquanto que o instrumento de representação não vem conseguindo encontrar uma resposta útil e eficaz, talvez por ainda estar enredado em parâmetros tradicionais, inteiramente superados.
Não esqueçamos que toda a construção do regramento tutelar trabalhista usou como base material o controle limitador do binômio tempo/movimento, típico do processo industrial fabril tradicional, sendo utilizado com adaptação aos outros setores da economia, com o que se torna cada vez mais visível sua insuficiência, ademais, a formulação ideológica de igualdade (presumida) perde substância exatamente pela completa desigualdade das características desse universo fragmentado e multifacetado que compõe o mundo do trabalho de hoje.
O desafio gigantesco está posto. Como rever e rearranjar todo o sistema, inserindo-o e reforçando seus laços com o sistema jurídico geral e interativo a que nos referimos antes, especialmente se consideramos o fator humano, porque este processo todo envolve essencialmente corações e mentes, razão e impulso, sentimentos e projetos, atinge em cheio toda a existencialidade humana e o ser humano, é um fim em si mesmo, e na formulação constitucional que temos, o ser humano é o centro e seus direitos fundamentais, condição de humanidade, são imperativos, não só da organização jurídicopolítica, como também da convivência civilizatória.
Temos que é um campo de reflexão absolutamente sedutor, na medida em que propõe um desafio a cada passo, uma contestação a cada resposta, um problema novo a cada solução encontrada.
Claro que o problema da convivência entre ordem jurídica permanente e ordem jurídica transitória não está restrito, por óbvio, ao Direito do Trabalho e às relações trabalhistas, abrange a tudo como antes se demonstrou, porém, a observação a partir da relação do trabalho humano, emanação mais direta da personalidade, oferece um belo passo para entender e buscar a solução do problema.
3. REGULAÇÃO JURÍDICA E O NOVO MUNDO DO TRABALHO
Sem dúvida que se tem um novo Mundo do Trabalho. Novo porque novo é o modo de produção, novo porque a dicotomia capital/trabalho apresenta nuanças absolutamente novas, não há em nenhum dos polos homogeneidade, muito menos o pretenso monolitismo que restringe os sujeitos das relações e os atores do diálogo social necessário. Bem ao contrário, neste particular a fragmentação bate forte, o entrechoque de interesses é multifário, as concorrências internas e suas contradições são acentuadas em ambos os polos do sistema de produção, circulação e consumo. E temos que tudo isso tem que ser compreendido, identificado e enfrentado em conjunto. Afinal, não existem respostas simples para problemas complexos.
Assistimos a uma verdadeira explosão de trabalho autônomo na prestação de serviços, com intermediação via plataformas virtuais, na interface entregadores/fornecedores/consumidores, portanto se estabelecendo uma relação trilateral, que por si só já discrepa do bilateralismo tradicional.
Neste novo modelo relacional temos três interesses convergentes, na prestação/obtenção do serviço, mas concorrentes quanto a custo, tanto da intermediação quanto do serviço e mesmo do produto. Pululam questionamentos e discussões sobre o tema. Há que se construir uma forma de ajuste razoável para acomodar a convivência entre as convergências e concorrências, reduzindo a conflitividade e, sobretudo, assegurando a todos os envolvidos, mas também à sociedade em geral, um nível ou grau de segurança jurídica tranquilizador, que é essencial para o fluxo regular da vida social.
Temos a forte impressão que este modelo, porque novo e diferente, não se ajusta nem mal, aos modelos normativos existentes, isto impõe, desde logo, a construção de uma solução jurídica que também precisa ser nova.
Outro aspecto importante da organização atual da economia está no chamado empreendedorismo, com o surgimento volumoso de microempresários individuais, na verdade, são os antigos prestadores autônomos de serviços que adquirem nova roupagem através de algum grau de inclusão na ordem jurídica, na medida em que se tornam contribuintes de alguma tributação, têm vinculação com o sistema previdenciário oficial e passam a ter “existência” juridicamente reconhecida pelo poder público, mais preocupado, ao que parece, com o exercício do poder de polícia através da fiscalização e, também, com o fiscalismo arrecadatório típico da mentalidade estatal brasileira.
Não bastem estas novas formas de trabalho, temos a considerar que mesmo aquelas que podemos considerar como sendo tradicionais, amoldadas à lei trabalhista vigente, em princípio, também estão a reclamar ajustes e redesenhos, porquanto a formatação que atualmente apresentam já não é a de antes. Apenas para ilustrar, fazemos referência ao funcionamento por sete dias por semana e vinte e quatro horas por dia, que vem se expandindo cada vez mais em estabelecimentos comerciais, claramente por imperativo da organização da sociedade contemporânea que altera horários e consome ao longo de todo o dia, em horários cada vez mais variados. Aí estão não mais apenas farmácias, mas lanchonetes, lojas, pontos de vendas, até mesmo academias de fitness. Os horários da vida dos indivíduos modificam-se, distribuindo-se ao longo das vinte e quatro horas do dia e, assim, são consumidores nas mesmas vinte e quatro horas.
Nos nossos dias, está cada vez mais difícil a definição de serviços essenciais, especialmente diante do surgimento de novas necessidades e demandas, que evidentemente antes não existiam.
Para relembrar Huxley, este admirável mundo novo, como salta aos olhos, envolve intensamente o trabalho humano e o ser humano que trabalha. Ora bem, está claro que tais mudanças não se ajustam nos modelos existentes e, portanto, as tentativas feitas 18 de aumentar ou diminuir “direitos”, antes de apontar solução concreta e viável, precariza ainda mais as condições daqueles que trabalham.
Mas, atentando-se com mais serenidade para este quadro e recorrendo-se ao direito positivado existente, podemos identificar as orientações básicas para compreender o sentido das coisas que a nossa ordem jurídica quer imprimir ao processo regulatório.
O texto constitucional nos fornece tais elementos necessários, inclusive que possibilitem a realização (ainda que em caráter transitório) de uma hermenêutica conforme a constituição, capaz de produzir efeitos razoavelmente eficientes para resolver significativa parcela dos problemas existentes.
É preciso deixar claro, desde logo, que a proposição hermenêutica que se faz em nenhum momento dispensa a atualização legislativa necessária, apenas constituise numa junta de dilatação que vai manter o funcionamento razoável do sistema enquanto se faz a atualização. Por outro lado, nos parece claro que é impossível atribuir toda a responsabilidade do processo ao Estado, seus mecanismos e ferramental por mais sofisticado que possam ser, seus operadores por mais hábeis e competentes que possam ser, não terão a capacidade (material) de perceber e entender as miríades de nuanças nas diversas situações relacionais que existem, tal é a variação entre elas e as peculiaridades que apresentam.
O que se pode inferir do contexto é que temos aí o espaço para o diálogo das fontes jurígenas, que precisam ser articuladas de um lado a normatividade estatal, esta é indispensável, mesmo que em linhas gerais expressas em standarts alargados e flexíveis para absorver expressivo número de modelos relacionais, mas, estes standarts e mesmo as linhas gerais precisam ter a sintonia fina através da fonte negocial, e de outro lado a normatização pactuada entre os atores envolvidos diretamente no processo, que 19 manejando seus interesses, limites e possibilidades vão em busca do ponto de equilíbrio e do ajuste, legitimado pelo acordo de vontades. Noutras palavras, temos que a intervenção estatal não pode desaparecer, mas necessariamente precisa ser ajustada à realidade através da norma negocial.
As formulações concretas necessárias precisam vir da articulação entre a normatividade estatal, com o exercício alargado da autonomia da vontade, individual e coletiva, dos atores nas relações de trabalho existentes. Os dois isolados, ou desencontrados (como estão) já demonstraram claramente a impossibilidade de resolver e de suas limitações (não pequenas) para a desafiadora tarefa.
Como antes fizemos referência, o texto Constitucional oferece orientações bem claras para a formulação de um projeto de soluções. Utilizamos os dispositivos que se nos apresentam como fundamentais para os objetivos propostos.
No Título I da Constituição, os princípios fundamentais, que entendemos como sendo aqueles princípios que desempenham o papel de reitores de todo o sistema jurídico, na medida em que contém os valores que a sociedade brasileira elegeu como tal, em decisão política constituinte, vê-se nos incs. II, III e IV do art. 1º, que são fundamentos do Estado e da ordem jurídica pátria: a cidadania, a dignidade da pessoa humana e os valores sociais do trabalho e da livre iniciativa. No mesmo título, no art. 3º, vê-se como objetivos fundamentais da República: a construção de uma sociedade livre, justa e solidária, que procura garantir o desenvolvimento nacional e erradicar a pobreza e a marginalização e reduzir as desigualdades sociais e regionais.
A leitura destes dispositivos nos permite perceber que o Estado brasileiro deita as raízes da sua existência na cidadania, que precisa ser entendida como inclusão e participação dos indivíduos na vida social, econômica e cultural, na construção do seu desenvolvimento humano integral e, portanto, os esforços do Estado e da sociedade 20 precisam e devem ser direcionados para criar e oferecer os meios necessários a esta inclusão. Como consequência da inclusão cidadã, começa-se a construção da proteção da dignidade humana, isto é, fica estabelecida a centralidade dos direitos fundamentais na ordem jurídica brasileira e na razão de ser do Estado, portanto da ordem social, econômica e política, tudo girando em torno do eixo “dignidade humana”, Assim, já se pode inferir que a finalidade de tudo é a obtenção da dignidade humana no grau mais elevado possível dentro dos limites e possibilidades materiais da própria sociedade. E o mesmo dispositivo, em outro princípio fundamental, oferece os meios para isto através da valorização do trabalho e da liberdade de iniciativa, portanto, da valorização da iniciativa privada no processo econômico, porém, em equilíbrio e articulação com a valorização do trabalho, implicitamente posto como elemento constitutivo da dignidade humana, não apenas por fornecer meios sobrevivenciais, mas também, porque é elemento de identificação e de inserção social no sistema, o que a seu turno é elemento constitutivo da almejada cidadania de inclusão integral, como antes referimos.
Seguindo o texto constitucional, examinemos o Título VII, que disciplina a Ordem Econômica e Financeira, que no caput do art. 170 repercute os arts. 1º e 3º antes mencionados, determinando que:
A ordem econômica, fundada na valorização do trabalho humano e na livre iniciativa, tem por fim assegurar a todos existência digna, conforme os ditames da justiça social, observados os seguintes princípios: propriedade privada e sua função social, livre concorrência, defesa do consumidor e do meio ambiente.
Deve ser mencionado que o art. 170 repercute o 1º e o 3º, fixando o conteúdo dos princípios fundamentais e objetivos do Estado e dando o perfil de que para tudo haja a observância da função social como mecanismo de efetivação dos demais Isto 21 significa dizer que a atividade econômica tem uma função social, entendida como um conjunto de responsabilidades para com a sociedade e seu conjunto, portanto, rompendo o paradigma da economia como um fim em si mesma, diversamente, aponta para que seja uma atividade-meio para o bem-estar geral e a dignidade humana.
É importante registrar em relação aos dispositivos mencionados que devem ser entendidos adequadamente como sendo cláusulas importantes e componentes do pacto político de organização da sociedade brasileira e, portanto, é fundamental destacar que nos dois universos normativos temos normas efetivamente jurídicas, heterônomas, válidas e eficazes, portanto aptas e capazes de produzir os seus efeitos jurídicos imperativos, o que significa dizer, de observância compulsória.
Podemos afirmar a esta altura, que ai estão contidas a orientações para a política legislativa, orientando como se devem direcionar as normas infraconstitucionais, o que significa dizer, no sentido da dignidade humana, pela valorização do trabalho e da liberdade de iniciativa em busca do desenvolvimento econômico em busca do bem-estar geral, devendo ficar claro que o desenvolvimento econômico não se confunde com o crescimento da economia (apenas), implicando necessariamente de desenvolvimento social, que é a elevação no nível da qualidade de vida da sociedade.
A diretriz constitucional relativa a função social perpassa para o direito privado, como vemos no art. 421 do C.Civ. que dispõe3:
A liberdade de contratar será exercida em razão e nos limites da função social do contrato.”. Com isso, temos a existência de limitações à autonomia da vontade, o fazendo exatamente, nos parâmetros de reconhecer a existência e a presença de função social nos acordos de vontade. Isto significa que a liberdade de livre disposição de direitos conforme a conveniência dos contratantes, e, de atrair a tutela jurídica para estas estipulações, tem limite de licitude ampliado além daquilo que é tradicional (licitude de objeto e finalidade, forma e capacidade) como requisito de validade, indo a obrigatoriedade de observar, na contração, a função social do que é contratado e, por óbvio, também, do como é contratado, como acentua Maria Helena Diniz, “...que a vontade dos contratantes está subordinada ao interesse coletivo, mas também pela função social do contrato, que o condiciona ao atendimento do bem comum e dos fins sociais.
Ora, quando se cogita da necessária releitura do direito do trabalho, do redesenho da tutela trabalhista, especialmente para os novos modelos de relações de trabalho, obrigatoriamente há que se adotar o imperativo constitucional da função social. Função social da empresa, da atividade econômica, da organização da economia e seu funcionamento, tudo direcionado ao bem-estar geral da sociedade com vistas a dignidade humana pela inclusão cidadã.
A esta altura vale a remissão ao contido no inc. VIII, do já citado art. 170, CF, que determina a busca pelo pleno emprego e que podemos interpretar aqui como a busca pela incorporação digna ao mundo do trabalho, com vistas a dignidade e ao bemestar. Lemos neste dispositivo sobretudo o mandamento da inclusão, isto é, a inclusão do indivíduo no mundo produtivo como forma de busca pela dignidade e bem-estar geral.
Veja-se, o eixo para as respostas que se busca está na estrutura constitucional vigente, tomando o texto constitucional como centro unificador da ordem jurídica e fazendo a leitura sistêmica dele, tal como ao início referimos. Nesta leitura, o art. 6º da Constituição, onde estão os direitos sociais trabalhistas, devem ser entendidos como repercussões e concretizações deste princípio, mas que não esgotam o tema, deixando, assim, espaço para a adição de outras construções normativas compatíveis com as realidades do “mundo novo” em que vivemos, sujeito a, como nunca antes, tempestades e intempéries, como as da tenebrosa pandemia da COVID-19, que se constituiu em verdadeira tragédia de saúde, com repercussões econômicas enormes e trágicas para o mundo do trabalho e às condições sociais, mas, sobretudo, uma tragédia humana na acepção mais integral do tema.
A lição que se pode e se deve tirar é que precisamos de um sistema jurídico capaz de ser geral sim, mas com a necessária aptidão para convivência com transitoriedades impostas pelas necessidades das circunstâncias. Nossa visão de crise tem cerne exatamente no reconhecimento da permanência das perplexidades e dos impasses, como decorrência da velocidade e da intensidade das mudanças das coisas, dos processos e das relações, que acabam por tornar todas as referências, parâmetros e paradigmas, estes sim, quase-transitórios.
4 - CONCLUSÃO
Muito embora o quadro que se nos apresenta tenha um quê de assustador, não autoriza nem a paralisia, nem o ativismo sem freios, voltado à correção de afogadilho a partir de casos concretos, o que sempre traz consigo uma carga de subjetivismo que nem sempre é razoável, muitas vezes pelo emocionalismo causado pelas circunstâncias.
Temos que, embora nem tudo se afigure com a desejável clareza, é possível enfrentar as situações com significativa eficiência, desde que se faça a leitura da legislação trabalhista, a normatividade infraconstitucional, em conformidade com as disposições e princípios da Constituição. Significa dizer que os dispositivos devem ser interpretados à luz dos princípios fundantes da constituição, dos objetivos nele inseridos, extraindo-se, assim, conclusões em conformidade constitucional, as quais, se não conseguem a forma perfeitamente ajustada às necessidades concretas postas, certamente viabilizam o que podemos considerar como sendo uma aproximação substancial, exatamente porque direcionada à unidade sistêmica constitucional, em unidade e coerência interna com toda a ordem jurídica estabelecida.
Entendemos que o ponto fulcral de orientação está na função social que a Constituição expressamente determina, não apenas para a propriedade (direito fundamental), mas para a organização da economia.
A leitura que se propõe da ordem infraconstitucional sugere que se indague se, no caso concreto, o mandamento legal segue em busca da função social e, no momento seguinte, como interpretá-lo para que faça a convergência (necessária) com o instituto constitucional.
Ora bem, está no conteúdo da função social, como demonstramos ao longo do trabalho, a dignidade humana e o bem-estar geral. Assim, a aplicação da norma ao caso concreto precisa levar em conta se, ao aplicá-la, se está preservando tanto a dignidade como o bem comum. Portanto, o exame do caso concreto precisa considerar as repercussões na sociedade em geral, se causa dano ou prejuízo à sociedade, mesmo indiretamente. Por exemplo, quando aplicando a lei trabalhista num caso concreto de direito individual se faz prevalecer esta lei sobre a lei de recuperação judicial de empresas, é imperativo considerar até que ponto tal aplicação não comprometerá a viabilidade da recuperação, considerando-se que a sobrevivência da empresa tem função social, na 25 medida em que diz respeito a outros empregos, a circulação de renda e produção, inclusive o interesse público do recolhimento de tributos, diretos ou indiretos, relativos à sua produção. Aqui, claramente, é imperioso sopesar, procurar como fazer para diminuir os impactos, de sorte a que se proteja sim o interesse individual, mas sem o excesso de atingir aos interesses gerais, até porque, nas finalidades do Estado brasileiro, já o referimos, deve-se considerar a busca pelo pleno emprego (preservar empregos portanto), considerando o bem geral da sociedade.
A fixação do conteúdo e da extensão dos direitos individuais precisa considerar, assim, a guarda de compatibilidade com os interesses mais gerais. É inaceitável pelo sistema constitucional que temos, preservar um sacrificando uma dúzia. Tem de haver espaço para todos.
Doutra banda, ao interpretar-se a integração entre um caso concreto diante da normatividade posta, a mesma pergunta há de ser feita, assim, está-se cuidando de preservar a dignidade, está-se valorizando o trabalho humano.
Das respostas obtidas dos questionamentos que exemplificativamente se colocou, é possível elaborar uma hermenêutica em conformidade constitucional, ajustada aos princípios expressamente estabelecidos, fazendo com que os efeitos jurídicos vão ao encontro do sistema jurídico que a sociedade construiu (politicamente) para reger suas relações e sua organização.
Em nenhum momento se tem a veleidade de apontar facilidade. É forçoso admitir que se trata de tarefa hercúlea com efeito, mas absolutamente indispensável, porque a experiência histórica mostra que ao se aplicar uma ordem jurídica considerada sua harmonia sistêmica, sua unidade e coerência internas, a efetividade social e a legitimação das decisões crescem exponencialmente.
Tudo isso pode e deve ser feito, porém sem que o intérprete inove em normas (legisle), construa soluções que não estejam no sistema ou nele não tenham raízes fincadas. Não se pode e nem se deve escolher que a normatividade na sua gênese tenha traço importante de escolha política consensuada em concertação da própria sociedade, o que já basta para se ter como essencial o seu integral acatamento. Cabe à hermenêutica, identificando o conteúdo e sentido do mandamento normativo, fazer a adequação aos princípios da constituição, aí está a essência da conformidade.
Por derradeiro, vamos deixar claro que tudo isso se aplica a toda a ordem jurídica (ramos do direito), mas que no âmbito do Mundo do Trabalho, por ser o mais marcado pela dinâmica econômica e social, mais marcado pelo conteúdo humano porque diretamente vinculado à pessoa, mais inçado de desigualdades e desequilíbrios, encontramos, seguramente, o campo mais vasto e mais rico, seja para observar os fenômenos a que nos referimos, seja para aplicar as técnicas jurídicas que aqui apresentamos, que não são novas, nada inovam, antes se recorda a necessidade de se atentar à supremacia da Constituição, que rege a sociedade, o Estado, mas, principalmente, o Direito que lhe corresponde.
Não se vai aqui além de uma provocação, de um convite à reflexão, com a ponderação e a serenidade necessárias que permitam identificar caminhos de avanço, que facilitem não apenas enfrentar, mas buscar resolver os angustiantes problemas vividos em nosso tempo.
-
Professor Titular da Faculdade de Direito de São Paulo – FADISP. Livre Docente e Doutor em Direito pela USP. Doutor em Direito Privado pela PUC/SP. Pós Doutoramento na Universidade de Salamanca (Esp.) e Universidade Nacional de Córdoba (Arg.) Pertence à Academia Paulista de Letras Jurídicas, Academia Paraense de Letras Jurídicas, Academia Paulista de Magistrados. Instituto Brasileiro de Estudos de Direito Administrativo, Financeiro e Tributário – IBEDAFT. Sociedade Brasileira de Direito Financeiro. Juiz do Trabalho de 1º Grau, do TRT da 2ª Região, São Paulo.
2 op.cit. p.21, ed. Librarie Genèrale de Droit et Jurisprudence, Paris, 1977
3 Código Civil Anotado, ed. Saraiva, 2009, p.364 22
Referências Bibliográficas: Estas obras foram consultadas para a elaboração do ensaio, sem citação expressa, por opção metodológica.
BARROSO, Luis Roberto. CURSO DE DIREITO CONSTITUCIONAL, ed.Saraiva, 2012
BLAISE, Jean-Bernar. DROIT DES AFFAIRES, ed. LGDJ, Paris, 2011.
CASSAR, Vólia Bonfim. DIREITO DO TRABALHO, ed. GenMétodo, RJ, 202
CASTILHO, Ricardo. DIREITOS HUMANOS, Ed. Saraiva, SP, 2015 DEVOLVÉ, Pierre. DROIT PUBLIQUE DE L’ECONOMIA, ed. Dalloz, Paris, 1998.
FONSECA, Reynaldo Soares da. O PRINCÍPIO CONSTITUCIONAL DA FRATERNIDADE, ed. D’Placido, MG, 2019
GARCIA, Gustavo Felipe Barbosa. CURSO DE DIREITO DO TRABALHO, ed. Saraiva, SP., 2020
GONÇALVES FERREIRA FILHO, Manoel. ESTADO DE DIREITO E CONSTITUIÇÃO, ed. Saraiva, SP.2004
GROULIER,Cédric. L’ÉTAT MORALISATEUR, ed. Mare rt Matin, Paris, 2014
LIPPMANN, Ernesto. DIREITOS FUNDAMENTAIS NA CONSTITUIÇÃO DE 1988, ed. LTr, SP, 1999.
LYON-CAEN, Gérard. DROIT DU TRAVAI Led. Dalloz, Paris, 2004
MARTINEZ, Fernando Rey. LA PROPRIEDAD PRIVADA EM LA CONSTITUICIÓN ESPAÑOLA, ed. Centro de Estúdios Constitucionales, Madrid, 1994
MASCARO NASCIMENTO, Amauri. CURSO DE DIREITO DO TRABALHO, ed. Saraiva, SP, 2011 28
MÉDA, Dominique. LE TRAVAIL, Um valeur em voie de disparition, ed. Alto Aubier, Paris, 1995
MORALES GARRORENA, Ángel. DERECHO CONSTITUCIONAL. Teoria de la Constituición y sistema de fuentes. Ed. Centro de Estudios Constitucionales, Madrid, 2011
PLÁ RODRIGUEZ, Américo. PRINCIPIOS DE DIREITO DO TRABALHO, ed. LTr, SP, 2014
ROUBIER, Paul. LE DROIT TRANSITOIRE, ed. Sirey, Paris, 1960.
SUSSEKIND, Arnaldo. CURSO DE DIREITO DO TRABALHO, ed. Renovar, RJ, 2004
THOMPSON, E.P. A FORMAÇÃO DA CLASSE OPERÁRIO INGLESA, ed. Paz e Terra, SP, 1987