Fonte: Estadão - 01/05/2023

Relatório sobre a democracia em mais de 180 países aponta que somos “democracia falha”, com riscos sérios de nos transformarmos numa autocracia

 Roberto Levianu a

São quatro meses de um terceiro mandato com ministério inflado com três nomes nada insuspeitos e altamente criticados, mas, mesmo assim, mantidos. Positivas as pastas de Direitos Humanos e Povos Originários, com colossal séquito presidencial na recente viagem à China. Mesmo com alguns acordos comerciais trazidos na bagagem, a viagem custou caro para um país com tanta desigualdade social e 33 milhões de pessoas passando fome. Parcerias comerciais são vitais, assim como ter estratégias responsáveis e éticas para desatar nós, sendo essencial ter presente que o contribuinte pagará esta conta. Exercer o poder pressupõe senso republicano, humildade e respeito ao dinheiro público, sem deslumbramento.

Após as revelações da CNN, vencida a obstrução presidencial de acesso às imagens dos episódios do 8 de Janeiro, determinou-se a coleta integral das mídias do circuito interno do Palácio do Planalto para que se apure com precisão as atitudes dos integrantes do Gabinete de Segurança Institucional (GSI), cujo ministro-chefe já se exonerou. A incontornável CPMI deverá buscar a verdade, pois, infelizmente, no passado, essas comissões foram palco de shows de gosto duvidoso e festivais de impunidade. E há muita gente na política especializada e talentosíssima em construir versões e moldagens de histórias de acordo com suas conveniências.

Renovemos esperanças na apuração dos fatos a fundo, apesar da concorrência de instalação – obviamente não casual – de outras CPIs simultâneas, para definir responsabilidades e gerar relatório ao Ministério Público, que deverá cumprir seu papel constitucional de promover a ação penal, em defesa do regime democrático. Nosso desafio será zelar pela transparência, pois a luz solar é sempre o melhor desinfetante, e, simultaneamente, lutar com força contra espetáculos falsificadores da verdade.

Mas não nos esqueçamos: a Lei das Estatais, de 2016, foi pacto nacional diante do que se revelou na Petrobras – bilhões de dólares de rombo produzido pela corrupção. Não é plausível aniquilar quarentenas (vacinas republicanas) para acomodar interesses de ocasião.

O orçamento secreto, criticado durante a campanha eleitoral, foi reciclado e está sofisticado sob supervisão do Ministério da Articulação Política.

Na regulação do lobby, usando o expediente da urgência de votação, com o qual o projeto foi aprovado na Câmara, a aberração: particulares podem convidar agentes públicos para eventos em Paris, voando em primeira classe, com hospedagem cinco estrelas e restaurantes de luxo. Isso é corrupção legalizada. E há muitos outros problemas.

Partidos governistas tentam anular no Supremo Tribunal Federal (STF) acordos referentes a casos de corrupção que o próprio STF homologou, o que implicaria aniquilação da segurança jurídica e deterioração de nossa respeitabilidade internacional. Os partidos, salvo honrosas exceções, tentam se anistiar em relação às violações cometidas contra direitos de mulheres, negros e às regras de transparência e financiamento, com apoio governista.

Em setembro termina o segundo mandato do procurador-geral da República (PGR) Augusto Aras, indicado fora da lista tríplice, o que a Constituição permite. Mas se Lula fizer o mesmo para escolher seu próprio fiscal, desrespeitará a autonomia do Ministério Público Federal (MPF) e desrespeitará política que o PT adotou nos quatro mandatos, bolsonarizando-se.

Bolsonaro, que não transmitiu a faixa presidencial e ocultou por mais de ano os episódios dos diamantes milionários, para evitar danos eleitorais, faz equilibrismo para se safar criminalmente e agora alega convenientemente que estava dopado ao publicar postagem pró-golpe. Mas são muitas as acusações contra ele – inclusive o MPF pediu sua inelegibilidade por oito anos no caso da reunião com os embaixadores, ao espalhar inverdades sobre urnas eletrônicas.

Neste cenário, o relatório anual V-Dem, sobre a democracia em mais de 180 países, avaliou a independência entre os Poderes, a integridade do sistema eleitoral, entre outros aspectos. Elaborado por estudiosos da Universidade de Gotemburgo, pela primeira vez desde 1995 o estudo mostra o número de ditaduras ultrapassar globalmente o número de democracias plenas. E foi o quarto ano seguido em que o relatório destacou piora da democracia no Brasil. Somos “democracia falha”, com riscos sérios de nos transformarmos numa autocracia.

Legalizar a corrupção ao regular o lobby, suprimir quarentenas, escolher o próprio fiscal (PGR), eliminar a segurança jurídica e o dever de obediência à Constituição, usar cronicamente o poder visando a acomodar interesses e o toma lá dá cá à luz do dia tem sido nossa realidade política. Se não houver mudança de curso na nossa condução política, podemos nos transformar em autocracia, real desastre democrático.

Lula tem a oportunidade de comandar a construção de um novo modelo de escolha de ministros do STF, com mandato e regras mais claras para prevenir conflitos de interesses e envolver mais instituições nas escolhas, e de comandar a inédita edificação de uma política pública anticorrupção – o México, por exemplo, dispõe de uma, aprovada por lei há poucos anos. São iniciativas relevantes, que precisam nascer mediante pacto republicano embasado na prevalência do interesse público.

*PROCURADOR DE JUSTIÇA NO MPSP, DOUTOR EM DIREITO PELA USP, ESCRITOR, PROFESSOR, PALESTRANTE, É IDEALIZADOR E PRESIDENTE DO INSTITUTO ‘NÃO ACEITO CORRUPÇÃO’