Fonte: Estadão - 01/05/2023
Relatório sobre a democracia em mais de 180 países aponta que somos “democracia falha”, com riscos sérios de nos transformarmos numa autocracia
São quatro meses de um terceiro mandato com ministério inflado com três nomes nada insuspeitos e altamente criticados, mas, mesmo assim, mantidos. Positivas as pastas de Direitos Humanos e Povos Originários, com colossal séquito presidencial na recente viagem à China. Mesmo com alguns acordos comerciais trazidos na bagagem, a viagem custou caro para um país com tanta desigualdade social e 33 milhões de pessoas passando fome. Parcerias comerciais são vitais, assim como ter estratégias responsáveis e éticas para desatar nós, sendo essencial ter presente que o contribuinte pagará esta conta. Exercer o poder pressupõe senso republicano, humildade e respeito ao dinheiro público, sem deslumbramento.
Após as revelações da CNN, vencida a obstrução presidencial de acesso às imagens dos episódios do 8 de Janeiro, determinou-se a coleta integral das mídias do circuito interno do Palácio do Planalto para que se apure com precisão as atitudes dos integrantes do Gabinete de Segurança Institucional (GSI), cujo ministro-chefe já se exonerou. A incontornável CPMI deverá buscar a verdade, pois, infelizmente, no passado, essas comissões foram palco de shows de gosto duvidoso e festivais de impunidade. E há muita gente na política especializada e talentosíssima em construir versões e moldagens de histórias de acordo com suas conveniências.
Renovemos esperanças na apuração dos fatos a fundo, apesar da concorrência de instalação – obviamente não casual – de outras CPIs simultâneas, para definir responsabilidades e gerar relatório ao Ministério Público, que deverá cumprir seu papel constitucional de promover a ação penal, em defesa do regime democrático. Nosso desafio será zelar pela transparência, pois a luz solar é sempre o melhor desinfetante, e, simultaneamente, lutar com força contra espetáculos falsificadores da verdade.
Mas não nos esqueçamos: a Lei das Estatais, de 2016, foi pacto nacional diante do que se revelou na Petrobras – bilhões de dólares de rombo produzido pela corrupção. Não é plausível aniquilar quarentenas (vacinas republicanas) para acomodar interesses de ocasião.
O orçamento secreto, criticado durante a campanha eleitoral, foi reciclado e está sofisticado sob supervisão do Ministério da Articulação Política.
Na regulação do lobby, usando o expediente da urgência de votação, com o qual o projeto foi aprovado na Câmara, a aberração: particulares podem convidar agentes públicos para eventos em Paris, voando em primeira classe, com hospedagem cinco estrelas e restaurantes de luxo. Isso é corrupção legalizada. E há muitos outros problemas.
Partidos governistas tentam anular no Supremo Tribunal Federal (STF) acordos referentes a casos de corrupção que o próprio STF homologou, o que implicaria aniquilação da segurança jurídica e deterioração de nossa respeitabilidade internacional. Os partidos, salvo honrosas exceções, tentam se anistiar em relação às violações cometidas contra direitos de mulheres, negros e às regras de transparência e financiamento, com apoio governista.
Em setembro termina o segundo mandato do procurador-geral da República (PGR) Augusto Aras, indicado fora da lista tríplice, o que a Constituição permite. Mas se Lula fizer o mesmo para escolher seu próprio fiscal, desrespeitará a autonomia do Ministério Público Federal (MPF) e desrespeitará política que o PT adotou nos quatro mandatos, bolsonarizando-se.
Bolsonaro, que não transmitiu a faixa presidencial e ocultou por mais de ano os episódios dos diamantes milionários, para evitar danos eleitorais, faz equilibrismo para se safar criminalmente e agora alega convenientemente que estava dopado ao publicar postagem pró-golpe. Mas são muitas as acusações contra ele – inclusive o MPF pediu sua inelegibilidade por oito anos no caso da reunião com os embaixadores, ao espalhar inverdades sobre urnas eletrônicas.
Neste cenário, o relatório anual V-Dem, sobre a democracia em mais de 180 países, avaliou a independência entre os Poderes, a integridade do sistema eleitoral, entre outros aspectos. Elaborado por estudiosos da Universidade de Gotemburgo, pela primeira vez desde 1995 o estudo mostra o número de ditaduras ultrapassar globalmente o número de democracias plenas. E foi o quarto ano seguido em que o relatório destacou piora da democracia no Brasil. Somos “democracia falha”, com riscos sérios de nos transformarmos numa autocracia.
Legalizar a corrupção ao regular o lobby, suprimir quarentenas, escolher o próprio fiscal (PGR), eliminar a segurança jurídica e o dever de obediência à Constituição, usar cronicamente o poder visando a acomodar interesses e o toma lá dá cá à luz do dia tem sido nossa realidade política. Se não houver mudança de curso na nossa condução política, podemos nos transformar em autocracia, real desastre democrático.
Lula tem a oportunidade de comandar a construção de um novo modelo de escolha de ministros do STF, com mandato e regras mais claras para prevenir conflitos de interesses e envolver mais instituições nas escolhas, e de comandar a inédita edificação de uma política pública anticorrupção – o México, por exemplo, dispõe de uma, aprovada por lei há poucos anos. São iniciativas relevantes, que precisam nascer mediante pacto republicano embasado na prevalência do interesse público.
*PROCURADOR DE JUSTIÇA NO MPSP, DOUTOR EM DIREITO PELA USP, ESCRITOR, PROFESSOR, PALESTRANTE, É IDEALIZADOR E PRESIDENTE DO INSTITUTO ‘NÃO ACEITO CORRUPÇÃO’