Ives Gandra da Silva Martins E Dircêo Torrecillas Ramos
(O Estado de S.Paulo)
Estão em pauta os abusos de autoridade praticados por magistrados e membros do Ministério Público. Alguns defendem a impossibilidade, por enfraquecer a investigação, a apuração e a decisão. Seria o réu acusando e pedindo a punição de seus investigadores e julgadores, numa inversão de valores. Surge a questão: há necessidade de nova legislação ou de aperfeiçoar a existente?
A Constituição federal, em seu artigo 52, inciso II, expressa: “Compete privativamente ao Senado Federal: (...) processar e julgar os Ministros do Supremo Tribunal Federal, os membros do Conselho Nacional de Justiça, do Conselho Nacional do Ministério Público, o Procurador-Geral da República e o Advogado-Geral da União nos crimes de responsabilidade”. O Texto Maior continua no artigo 93, inciso VIII: “o ato de remoção, disponibilidade e aposentadoria do magistrado, por interesse público, fundar-se-á em decisão por voto da maioria absoluta do respectivo tribunal ou do Conselho Nacional da Justiça, assegurada ampla defesa”; e no inciso X: “as decisões administrativas dos tribunais serão motivadas e em sessão pública, sendo as disciplinares tomadas pelo voto da maioria absoluta de seus membros”. No artigo 96, III, verificamos a competência privativa dos Tribunais de Justiça de “julgar os juízes estaduais e do Distrito Federal e Territórios, bem como os membros do Ministério Público, nos crimes comuns e de responsabilidade, ressalvada a competência da Justiça Eleitoral”.
O artigo 103, B, da Lei Magna, dedicado ao Conselho Nacional da Justiça (CNJ), em seu § 4.º dá competência para “o controle da atuação administrativa e financeira do Poder Judiciário e do cumprimento dos deveres funcionais dos juízes...”. E zelar pela legalidade dos atos, aplicação dos princípios do artigo 37, receber reclamações, representar ao Ministério Público, no caso de crime contra a administração pública ou de abuso de autoridade. Conforme o § 5.º, inciso I, receber reclamações e denúncias, de qualquer interessado, relativas aos magistrados. Conforme o § 7.º, são criadas ouvidorias de Justiça para receber reclamações e denúncias de qualquer interessado, inclusive no Distrito Federal. Têm, enfim, submissão às corregedorias de seu tribunal e do CNJ. Em consonância com o artigo 108, I, a, “os juízes federais da área de sua jurisdição, incluídos os da Justiça Militar e da Justiça do Trabalho, nos crimes comuns e de responsabilidade, e os membros do Ministério Público da União, ressalvada a competência da Justiça Eleitoral”, são julgados originariamente pelos Tribunais Regionais Federais.
Quanto aos crimes de responsabilidade, verificamos que políticos poderão julgar os ministros do Supremo Tribunal Federal (STF) e o procurador geral da República, por denúncia de qualquer cidadão, perante o Senado Federal, em consonância com o artigo 41 da Lei 1.079/50, a chamada Lei do Impeachment. Esta, no artigo 42, prescreve que “a denúncia só poderá ser recebida se o denunciado não tiver, por qualquer motivo, deixado definitivamente o cargo”. A Lei do Impeachment, no seu artigo 39, define que são crimes de responsabilidade dos ministros do STF alterar, por qualquer forma, exceto por via de recurso, a decisão ou o voto já proferido em sessão do tribunal; proferir julgamento quando, por lei, seja suspeito na causa; exercer atividade político-partidária; ser patentemente desidioso no cumprimento dos deveres do cargo; proceder de modo incompatível com a honra, a dignidade e o decoro de suas funções. Há uma ordem razoável de votação, do mais novo ao mais antigo, para evitar influência e daí a vedação para mudança do voto proferido, sob pena de afastamento. No segundo caso poderemos citar os artigos 144 e 145 do Código de Processo Civil de 2015; ao tratar dos impedimentos e da suspeição, estabelece uma lista substancial.
Infringindo os ministros do STF qualquer desses dispositivos, estarão eles sujeitos a processo e julgamento e se condenados pelo voto de 2/3 dos senadores ficarão desde logo destituídos do cargo e inabilitados por até oito anos para o exercício de qualquer função pública, conforme os artigos 68, 69 e 70 da Lei 1.079/50.
A situação é a mesma para o procurador-geral da República. O artigo 40 da Lei 1.079/50 classifica seus crimes de responsabilidade nos mesmos termos quanto à suspeição, ao comportamento desidioso e ao procedimento incompatível com a dignidade e o decoro que o cargo exige. Acrescenta para este “recusar-se à prática de ato que lhe incumba”, ou seja, se tem a incumbência, é de sua atribuição, e se recusa ou se omite, intencionalmente ou não, estará sujeito às mesmas punições. Obedece aos mesmos processo e julgamento, com denúncia de um cidadão perante o Senado, previstos na Lei 1.079/50.
Verifica-se um controle entre Poderes e dos cidadãos sobre os Poderes. Os responsáveis pela última palavra em Direito, os ministros do STF e o fiscal maior da lei, o procurador-geral da República, do mesmo modo que todos, são responsáveis e responsabilizados, têm seus limites nesse sentido e na interpretação dos princípios e regras. É uma imposição do Estado de Direito. Deve-se destacar a competência para a iniciativa da lei de organização do Poder Judiciário a ele próprio. Preserva-se a sua autonomia, mas exige-se a isenção, a independência e a imparcialidade dos magistrados na atividade hermenêutica jurisdicional. Somente sua interpretação poderá ser reformada.
Temos, pois, normas que já punem a magistratura e o Ministério Público, disciplinarmente, por crimes comuns e de responsabilidade. Se há abusos, benefícios, vantagens, corporativismo, a legislação deverá ser atualizada, reformada e adaptada à realidade nesses pontos.