Como decorrência da eficiente atuação da Força Tarefa de que participa a Polícia Federal, o Ministério Público e a Magistratura montanha de dinheiros desviados pelos integrantes do crime organizado, estão sendo devolvidos em função das delações premiadas e dos acordos de leniências homologados na Justiça.
Só que nunca se soube, com clareza, o destino dado a esses dinheiros públicos recuperados, nem do exato montante dos recursos ingressados efetivamente no Tesouro. Jamais houve prestação de contas pelos órgãos e autoridades públicas envolvidas na recuperação de verbas surrupiadas pelos malfeitores, nem determinação de órgãos fiscalizadores competentes exigindo a prestação de contas. Nunca houve transparência na movimentação desses fantásticos recursos financeiros.
De vez em quando a mídia noticia que os órgãos que atuam na Operação Lava Jato, notadamente, Polícia Federal e Ministério Público querem ficar com uma parte desse rico filão financeiro, para utilização nos respectivos órgãos, certamente, carentes de verbas, como acontece com a generalidade dos órgãos públicos brasileiros, onde as necessidades são sempre maiores do que as possibilidades do Tesouro.
Acontece que nenhum órgão público atua por si e para si, mas, unicamente em nome do Estado e para o Estado, e debaixo da lei.
Qualquer dinheiro recuperado dos infratores (pessoas físicas ou jurídicas) deve ingressar no Tesouro da União, por força do princípio da unidade de tesouraria expresso no art. 56 da Lei nº 4.320/64. E uma vez ingressada a receita no Tesouro dele só poderá sair em forma de pagamento de despesa autorizada e fixada na LOA, em nome do princípio maior da transparência financeira do Estado. E mais, o princípio de fixação de despesas públicas impede a concessão de crédito indeterminado ou ilimitado. Há de ser fixado cada centavo na dotação própria. É assim que prescreve as normas constitucionais e é assim que se controla e fiscaliza cada centavo do dinheiro público gasto.
Se as verbas desviadas e recuperadas pudessem ser direta e livremente utilizadas, ou direcionadas por este ou aquele órgão que atuou na sua recuperação, perder-se-ia por completo o controle e a fiscalização das despesas públicas.
Recentemente tivemos notícias de destinação de verbas recuperadas diretamente pelo órgão ministerial, para as instituições públicas, como a Universidade de São Paulo, ao arrepio das normas orçamentárias em que pese a sua boa intenção [2]. O que é pior, nunca se ouviu falar em qualquer tipo de prestação de contas, apesar da lapidar clareza do texto do parágrafo único do art. 7º da Constituição Federal que assim prescreve:
“Prestará contas qualquer pessoa física ou jurídica, pública ou privada, que utilize, arrecade, guarde, gerencie ou administre dinheiros, bens e valores públicos ou pelos quais a União responda, ou que, em nome desta, assuma obrigações de natureza pecuniária”.
É o caso de perguntar: o que o TCU está esperando para agir ante os fatos veiculados pela imprensa tornando público as destinações de dinheiros públicos pelo órgão ministerial? Até agora não veio à tona qualquer informação de que a Corte de Contas esteja tomando as contas de pessoas ou órgãos responsáveis pela movimentação de recursos financeiros recuperados no âmbito da operação Lava Jato.
Há poucos dias a mídia trouxe a surpreendente notícia de um acordo de mais de R$ 2,5 bilhões celebrado no exterior pela Petrobrás que teria depositado em nome do Ministério Público brasileiro em uma conta bancária de Curitiba/PR, em cumprimento ao “acordo” feito com a autoridade financeira norte-americana.
Conforme o noticiário do Jornal o Estado de São Paulo metade desse valor depositado, ou seja, R$ 1,2 bilhão seria destinado para “investimento social em projetos, iniciativas e desenvolvimento institucional de entidades e redes de entidades idôneas” a ser gerido por um fundo a ser criado por um “comitê de curadoria social” [3].
Resta claro que o Ministério Público Federal que teria celebrado semelhante acordo investiu-se no poder de formular políticas públicas que nem ao Presidente da República, eleito pelo voto popular, é dado a elaborar, sem o respaldo dos representantes do povo no Congresso Nacional. Não se trata de negar a idoneidade, a competência técnica e a seriedade dos componentes do nosso Ministério Público, mas, não cabe a um órgão ministerial imiscuir-se, não só na execução, como também, e principalmente na elaboração de políticas públicas, tarefa cabente aos agentes políticos legitimados pelo voto popular.
Nas palavras abalizadas do insigne Ministro do Supremo Tribunal Federal, Ministro Marco Aurélio o “órgão público vive apenas do que previsto no orçamento aprovado pelo Legislativo” porque “a mesclagem do público com o privado não interessa o Estado, não interessa a sociedade”. “É a Babel”.
Fico a pensar com os meus botões: como ficaria se o Prefeito da Capital de São Paulo resolvesse aplicar as fantásticas multas de trânsito, que crescem como bolas de neve, para criar um Instituto destinado à formação de líderes jovens, por exemplo, para arejar o ambiente político? Sabe-se que as multas de trânsito, como resultado de ausência de previsão orçamentária, o produto de sua arrecadação vem sendo desviado de suas finalidades previstas no art. 320 do Código Brasileiro de Trânsito: educação de trânsito, sinalização de trânsito e engenharia de tráfego, de campo, policiamento e fiscalização. É de se crer que o desvio esteja ocorrendo para o custeio das despesas correntes do Município, notadamente, as de pessoal. É um mal menor! Bem melhor do que direcionar as multas para criação de um Instituto, uma organização que tem cheirado muito mal, frequentemente, alvo de notícias escandalosas em termos de movimentação financeira. Pelo menos um deles está envolvido nas investigações da força tarefa da Lava Jato que, aliás, já resultou em denúncia criminal.
É chegado o momento de o Congresso Nacional atentar para essa triste realidade visível e elaborar, com urgência, um instrumento legislativo determinando que todo o dinheiro público recuperado no âmbito da Operação Lava Jato seja recolhido unicamente ao Tesouro da União, vedando-se expressamente a sua permanência a qualquer outro órgão público ou privado, sob pena de caracterizar ato de improbidade do agente público responsável. Essa providência se impõe porque a operação Lava Jato veio para ficar; não há prazo certo para o término de sua atuação. Afinal, leva-se muito tempo para apurar todos os atos de corrupção, decorrentes de sua institucionalização ao longo de 13 anos em que se plantaram as células cancerígenas.
Depois de aprovada e sancionada a medida legislativa apontada deverá constar na LOA uma dotação específica a título de previsão de recursos financeiros provenientes da atuação da operação Lava Jato revertidos ao Tesouro.
Somente com essas providências legislativas tornar-se-á fácil o controle e fiscalização, pelo TCU, das verbas arrecadadas, e a sociedade tomaria conhecimento da boa aplicação dos recursos financeiros desviados de órgãos públicos e de empresas estatais e recuperados por meio da eficiente e elogiável atuação conjunta da Polícia Federal, Ministério Público e Magistratura.
O que não é admissível é continuar como está, pois, nenhum dinheiro público pode ser subtraído do mecanismo de controle e fiscalização interna e externa, este desempenhado pelo Congresso Nacional com o auxílio do Tribunal de Contas.
Faltando os elementos de despesas não haveria como exercer o controle efetivo das despesas públicas, a exemplo do que vem acontecendo com as verbas que compõem a DRU, um fundo sem nome que substituiu o seu antecessor FEF que, por sua vez, sucedeu ao FSE, criado em uma conjuntura excepcional que desapareceu logo após o impeachment do Presidente Collor. Mas a DRU continuou e teve a sua vigência prorrogada até 31-12-2023 pela EC nº 93/16. Pelo visto não era fim, porque os sucessivos governantes tomaram gosto pela realização de despesas públicas à sua discrição, sem as amarras da LOA que dificultam e atrapalham a execução do orçamento. Ora, a função da LOA não é a de facilitar a despesa pública que precisa ser contida nos limites da lei.
SP, 11-3-19.
[1] É autor de 32 obras jurídicas, dentre elas, o Direito financeiro e tributário, 28ª edição, São Paulo: Atlas, 2019.
[2] Nada contra a USP que certamente precisará de muito mais verbas do que recebeu, para continuar cumprindo a sua nobre missão de formar profissionais de primeira linha em diversos ramos do conhecimento científico.
[3] O Estado de São Paulo do dia 8-3-2019, p. A10.