Interesses conjunturais mesquinhos levam ocupantes transitórios do poder a trabalhar pelo afrouxamento da norma, escreve Roberto Livianu
Há quase 10 anos, descobriu-se a existência do luxuoso departamento de operações estruturadas, na construtora Odebrecht. Dotado de recursos humanos, tecnológicos, mobília e todas as raposas necessárias para manejar estas poderosas engrenagens, ao lado do departamento comercial e do departamento de compliance (integridade).
Por mais cínico, escandaloso e canalha que pudesse parecer, este nome pomposo era a denominação do setor da propina da companhia. Muitos acreditam que se atribuiu nomenclatura desta natureza, tamanha a certeza da impunidade. A brilhante jornalista Malu Gaspar relata a saga da dinastia Odebrecht e suas sórdidas relações com o poder, com riqueza (incluindo cifrões) de detalhes, depois de longo trabalho de pesquisa, depoimentos, análises e estudos no best seller “A Organização”.
Nesta linha do tempo, é de suma importância o ano de 2016, quando vêm à tona, com contornos dramáticos, os números estratosféricos do rombo de muitos bilhões de dólares. Corrupção, que também envolve a Odebrecht (e outros personagens) na Petrobras, foi o que ensejou a aprovação da Lei 13.303 de 2016, a chamada Lei das Estatais, um dos mais importantes legados do governo Temer para o país.
A lei foi sancionada como verdadeiro remédio nacional para estancar a sangria que pilhava os cofres públicos, a impessoalidade e a moralidade administrativa, princípios administrativos constitucionais violados, de importância capital. A OCDE, organismo internacional multilateral ao qual o Brasil postula assento, considera os compromissos contidos na lei e tal diploma essenciais para o atingimento do sucesso na luta anticorrupção.
Lamentavelmente, entretanto, a voracidade predatória secular, inerente ao patrimonialismo coronelista, com traços característicos da cultura do compadrio, mantém-se viva desafiando nossa essência republicana.
A Lei das Estatais teve o grandioso mérito de fazer frente a estes arroubos. Por meio dela instituíram-se as quarentenas, verdadeiras vacinas providencialmente criadas para proteger o interesse da sociedade em situações de potenciais conflitos de interesses. O mecanismo estabelece prazos mínimos para que certas pessoas ocupem cargos em empresas públicas ou sociedades de economia mista.
Passados pouco mais de 6 anos de sua vigência, obviamente sem que a lei tivesse passado por processo de fadiga, interesses conjunturais mesquinhos levam os ocupantes transitórios do poder a trabalhar pelo afrouxamento da norma. O objetivo é acomodar seus interesses, já que ela estabelece quarentenas para que pessoas sejam empossadas em conselhos ou em cargos de direção de empresas públicas.
No momento, acrescente-se o processo de progressiva deterioração dos partidos políticos, que se transformaram em grupos sem identidade ideológica, ética, sem credibilidade ou coerência. Seu denominador comum único e exclusivo é a fome infinita por fatias gigantes do bolo de recursos financeiros dos fundos –partidário e eleitoral. E a disposição por modificar as regras de acesso aos fundos, tornando-as quase inexistentes, sem obrigações de prestar contas, como se não se tratasse de dinheiro público.
Abolir estes prazos, esmagando as quarentenas é quase como solenemente desprezar prazos de validade de alimentos ou medicamentos. É ato revestido de um nível de egoísmo e descompromisso com a civilidade republicana tão estratosféricos, em que praticamente se abolem as referências éticas e o interesse público.
Mas então alguns dirão: mas quais referências éticas, num país em que o presidente da República, ainda acusado de corrupção, mantém como ministros pessoas de integridade duvidosa? Um que requisitou diárias e usou avião da FAB para voar a São Paulo como pretexto para participar de eventos do mundo dos cavalos de raça durante dias (sua agenda de trabalho durou apenas 2,5 horas). Outro condenado por improbidade e outra ligada a milícias no Rio de Janeiro.
Outros tantos indagarão, de que ética falas? A dos quase 17 milhões em diamantes escondidos na escultura? Ou a ética das “rachadinhas”? Ou seria a “ética” da gestão pavorosa da pandemia, que resultou em 700.000 óbitos? Ou seria a ética de disseminar o descrédito das urnas eletrônicas?
Neste dificílimo cenário, o plenário do Supremo Tribunal Federal debate o futuro da Lei das Estatais, depois de um pedido de vista do ministro André Mendonça e uma decisão monocrática do ministro Lewandowski. É vital a solidez da colegialidade, que precisa ser a regra nas decisões do Tribunal, para trazer segurança jurídica cada vez maior à sociedade.
Por outro lado, a Suprema Corte tem neste caso papel fundamental a cumprir no sentido de ser o guardião da cidadania e de reafirmar o princípio fulcral da prevalência do interesse público, de caráter central da nossa Constituição – o princípio dos princípios. Decidir diferentemente, com todo respeito, a meu ver enfraquecendo e desbotando a Lei das Estatais, depois de uma tramitação parlamentar em que a sociedade não foi ouvida da forma como deveria, sacrificando-se mais uma vez a maturação democrática, significaria amesquinhar esta própria sociedade, castigando-a e privilegiando os interesses do governante de ocasião.
Roberto Livianu, 54 anos, é procurador de Justiça, atuando na área criminal, e doutor em direito pela USP. Idealizou e preside o Instituto Não Aceito Corrupção. Integra a bancada do Linha Direta com a Justiça, da Rádio Bandeirantes, e a Academia Paulista de Letras Jurídicas. É colunista do jornal O Estado de S. Paulo e da Rádio Justiça, do STF. Escreve para o Poder360 às terças-feiras.