Fonte: Correio Braziliense: 16/2/2022

Num sistema democrático, a alternância entre governos de direita e de esquerda é legítima. Isaiah Berlin, um clássico do liberalismo, considera de esquerda o liberalismo que se opõe ao excessivo poder da autoridade baseada na força da tradição na qual identifica a principal característica da direita.Ruy Altenfelder 6 20b50

Berlin sustenta que o regime autoritário da União Soviética desqualificou e tornou imprestável a distinção entre direita e esquerda ao usurpar a palavra esquerda. Semelhante afirmação mostra que "esquerda" tem, para quem a enuncia, um significado positivo, embora possa ter, como todas as palavras da linguagem política, que não é uma linguagem rigorosa, ambos os significados, positivo e negativo conforme quem delas se apropria e o contexto em que tal apropriação ocorre.

Isso explica, também, porque o próprio Berlin chama de esquerda a doutrina liberal que mais lhe agrada, e para cuja reformulação dedicou suas obras mais conhecidas e justamente mais celebradas.

O saudoso Norberto Bobbio, um dos mais respeitados pensadores políticos contemporâneos distingue o significado descritivo e o significado emotivo das palavras. Trata-se de uma distinção fundamental, sobre a qual nenhum crítico depositou a devida atenção. Quem se considera de esquerda, do mesmo modo que quem se considera de direita, admite que as respectivas expressões estão referidas a valores positivos. Esta é a razão pelo qual um e outro não deixam de incluir a liberdade entre estes valores. O contraste corresponde a uma outra distinção que não se superpõe a distinção entre direita e esquerda, mas como ela se cruza.

A esquerda de hoje não é mais a esquerda de ontem. Enquanto existirem homens movidos por um profundo sentimento de insatisfação e de sofrimento perante as iniquidades das sociedades contemporâneas — hoje talvez menos ofensivas do que em épocas passadas, mas bem mais visíveis — eles carregarão consigo os ideais que há mais de um século tem distinguido todas as esquerdas da história.

Talvez, ensina Bobbio, seja a esquerda democrática que possa e deva escutar as vozes que ensinam que o homem é malvado, mas precisa ser ao mesmo tempo auxiliado de todos os modos, incluindo os mais prosaicos, como a assistência à saúde, a educação e a aposentadoria.

A distinção entre direita e esquerda — que por cerca de dois séculos, a partir da Revolução Francesa, serviu para dividir o universo político entre duas partes opostas — não tem mais nenhuma razão para ser utilizada. É usual a referência a Sartre, que parece ter sido um dos primeiros a dizer que direita e esquerda são duas caixas vazias. Que, por isso, não teriam mais nenhum valor.

A árvore das ideologias está sempre verde. "Esquerda" e "Direita" indicam programas contrapostos com relação a diversos problemas cuja solução pertence habitualmente à ação política, contrastes não só de ideias, mas de interesses e de valorações a respeito da direção a ser seguida pela sociedade, contrastes que existem em todas as sociedades e que não vejo como possam simplesmente desaparecer. Pode-se, naturalmente, replicar que os contrastes existem, mas não são mais os do tempo em que nasceu a distinção: modificaram-se tanto que tornaram anacrônicos e inadequados os velhos nomes.

Sociedades democráticas são sociedades que toleram, que pressupõem a existência de diversos grupos de opinião e de interesse em concorrência entre si; tais grupos às vezes se contrapõem, às vezes se superpõem, em certos casos se integram para depois se separarem.

Ruy Altenfelder - Advogado - Presidente da Academia Paulista de Letras Jurídicas (APLJ)