Sumário: 1 Introdução. 2 A descaracterização do CTN como estatuto jurídico neutro. 3 Exame crítico da proposta legislativa sob comento. 4 Conclusão

1 Introdução

O PLS nº 204/2016 de autoria do Senador José Serra (PMDB/SP) antecipa a interrupção do prazo de prescrição tributária pelo protesto da Certidão de Dívida Ativa – CDA.

O referido projeto legislativo foi aprovado celeremente no Senado Federal e encontra-se em tramitação na Câmara Federal identificado como PLP nº 459/2017.

2 A descaracterização do CTN como estatuto jurídico neutro

Por ação dos legisladores o Código Tributário Nacional, um estatuto jurídico modelar pela sua neutralidade, vem sofrendo contínuas alterações que lhe conferem a feição de uma lei federal de interesse da União. Kiyoshi Harada 2 0e052Senão vejamos.

A Lei Complementar nº 104, de 104, de 10 de janeiro de 2001, introduziu o parágrafo único ao art. 116 do CTN para instituir uma norma geral antielisão, tentando prejudicar o legítimo exercício do planejamento tributário, para não trilhar caminhos mais onerosos.

A Lei Complementar nº 118, de 9 de fevereiro de 2009, por sua vez, introduziu o art. 185-A ao CTN instituindo a indisponibilidade universal de bens do contribuinte-devedor que, devidamente citado, deixar de pagar ou nomear bens à penhora. Na prática, a execução fiscal tem começado com o bloqueio eletrônico das contas bancárias sob o indefectível e equivocado argumento de que o dinheiro precede bens imóveis na ordem de preferência na penhora. Assim, com um simples “click” no computador bloqueiam-se dinheiros destinados a pagar tributos retidos na fonte, a pagar a folha, a pagar os fornecedores etc. Confunde-se dinheiro disponível de que trata o CPC com o dinheiro reservado para pagamentos destinados a manter o funcionamento das atividades econômicas. O bloqueio é instantâneo, mas, o seu levantamento que o § 1º diz ser “imediato” pode levar tanto um mês, como um ou dois anos, como já aconteceu com um caso sob nosso patrocínio, depois de pago o débito reclamado pelo fisco [1]. Essa mesma Lei Complementar alterou o inciso I, do parágrafo único, do art. 174 do CTN para interromper a prescrição pelo despacho do juiz que ordenar a citação em execução fiscal. Resultado disso foi a distribuição em massa e alhures de executivos fiscais que ficaram amontoados após a prolação do despacho ordenando a citação. Para que perder tempo com a localização do executado se a prescrição está interrompida! Agora, esse projeto legislativo sob exame, mediante nova alteração do parágrafo único, do art. 174 do CTN, preconiza a interrupção da prescrição com o protesto da Certidão de Dívida Ativa – CDA, praticamente derrogando o inciso II desse mesmo parágrafo, que prevê a interrupção da prescrição pelo protesto judicial, que dá muito trabalho por ter que justificar fundamentadamente a necessidade de protesto. Não há requerimento judicial que dispense a motivação que, por óbvio, não pode consistir na fruição do ócio.

3 Exame crítico da proposta legislativa sob comento

Feitas as considerações retro façamos um exame crítico do projeto legislativo em epígrafe que visa instituir a interrupção da prescrição tributária mediante protesto da CDA.

Como vimos, a legislação tributária vem evoluindo no sentido de dilatar cada vez mais o prazo prescricional da cobrança do crédito tributário que originalmente só se interrompia pela citação feita ao executado (incido I, do parágrafo único, do art. 174 do CTN); ao depois esse prazo interruptivo foi antecipado para a data que ordenar a citação (redação conferida pela LC nº 118/2005). Agora, procura-se antecipar para a data do protesto da CDA.

O protesto da CDA, por si só, por constituir uma sanção política, afronta três Súmulas do STF editadas didática e ilustrativamente: Súmulas nºs 70, 323 e 547. De fato, se na esfera privada o protesto tem a legítima finalidade de prevenir eventuais credores contra os devedores inadimplentes, na esfera do direito tributário só pode ter o objetivo de coagir o contribuinte a solver a sua obrigação tributária abrindo mão do princípio constitucional do contraditório e ampla defesa. Não teria sentido sustentar que o protesto tem a finalidade de prevenir outros fiscos a não fazer cobrança do crédito tributário de determinado contribuinte no pressuposto de que ele não irá pagar.

Verifica-se que a legislação vem substituindo o meio interruptivo da prescrição pelo protesto judicial previsto no inciso II, do parágrafo único, do art. 174 do CTN, que requer justificativa e exercício da inteligência, por um sistema mecânico e automático mediante um “clic” no botão do computador para mandar a CDA ao protesto.

Ora, a prescrição tributária não existe para gerar inadimplência do contribuinte, mas para protegê-lo do arbítrio do Estado-cobrador que poderia ficar indefinidamente com a espada de Dâmocles sobre cabeça do agente econômico, produtor de riquezas que geram tributos. A indefinição acerca de determinado débito imputado a certo contribuinte, por tempo indefinido, acaba afetando as suas relações jurídicas com terceiros que deixam de celebrar contratos com o receio de ação fiscal que venha comprometer a situação patrimonial daquele contribuinte.

A prescrição é, também, uma forma de buscar eficiência dos servidores públicos integrantes do quadro de administração tributária (art. 37, caput e inciso XXIII da CF).

A prescrição exerce, pois dupla importante função: de um lado, protege o contribuinte contra eventuais abusos do fisco, e de outro lado, combate eficazmente a leniência do agente público.

A inadimplência das obrigações tributárias é tão condenável quanto ao exercício abusivo e ilimitado do Estado-cobrador.

Por isso, o CTN fixou um prazo mais do que razoável, de cinco anos, para a Fazenda promover a cobrança do crédito tributário, a contar da data de sua constituição definitiva pela notificação do lançamento feita ao contribuinte. Durante todo esse prazo, que fica suspenso por força da impugnação ou recurso, o contribuinte só é responsável por 30 (trinta) dias e outros eventuais 15 (quinze) dias para interposição, quando cabível, de recurso especial. Todo o restante do prazo é da Fazenda, para ultimar o processo administrativo tributário. Onde a necessidade de mais prazo?

Interromper a prescrição mediante simplório gesto de protesto da CDA, com toda certeza, contribuirá para avolumar o estoque da dívida ativa da União que já chegou à fantástica soma de R$2,3 trilhões.

A vingar a providência legislativa sob exame haverá uma premiação à leniência dos servidores públicos, contribuindo para tornar realidade permanente e rotineira a cobrança de tributos dos adimplentes com nível de imposição cada vez maior, de um lado, e de outro lado, abandonar a cobrança coativa dos inadimplentes que simplesmente irão engrossando o volume da dívida ativa “incobrável”. É um regime cruel que pune os bons pagadores de impostos e premia os inadimplentes e sonegadores.

Nenhuma medida legislativa pode deixar de perseguir a eficiência no serviço público que é um princípio constitucional. No quadro atual os servidores não vêm exercendo com eficiência o serviço de cobrança da dívida ativa, nem estão se dando ao trabalho de interromper justificadamente a prescrição por via de protesto judicial, tornando letra morta o disposto no inciso II, do parágrafo único, do art. 174 do CTN.

4 Conclusão

A realidade atual está a exigir o restabelecimento da interrupção da prescrição apenas com a citação do executado, obrigando a Fazenda a diligenciar o paradeiro do executado, ou a promover execução qualitativa do crédito tributário, evitando-se milhares de execuções paralisadas há mais de cinco anos, atrapalhando a cobrança de créditos tributários viáveis.

A aprovação desse projeto legislativo pela Casa do Povo seria o mesmo que conferir aos servidores públicos o direito ao ócio à sombra de uma frondosa árvore gigantesca, provocando o acúmulo cada vez maior do estoque da dívida ativa que logo estará empatando com o nosso PIB. Com a cartilha da sombra e água fresca não será possível a construção de uma agenda positiva para resolver o crônico problema do crescente estoque da dívida ativa.

SP, 5-11-19.

[1] Depois de tudo pago e comprovado ao requerer o levantamento do bloqueio o juiz, que trocou a toga pela Fazenda, ficou insistindo, por longo tempo, na oitiva da Fazenda que se desinteressou de continuar oficiando nos autos, porque já satisfeito o seu crédito. A ilustre procuradora que oficiava no processo ora estava curtindo férias no exterior, ora estava com licença prêmio, ora com licença gravidez etc. Ninguém além dela poderia tocar no processo! Parece inacreditável, mas aconteceu. Acabamos perdendo o cliente, mas ficamos com a consciência do dever cumprido.

Kiyoshi Harada - Acadêmico da APLJ e Presidente do IBEDAFT