(O Estado de S.Paulo)
A saudade é a presença da ausência.
O saudoso Oliveiros S. Ferreira estará sempre presente em nossa memória por meio de seus ensinamentos. Ele integrou o Conselho Superior de Orientação Política e Social (Cops), instituição ligada ao Instituto Roberto Simonsen – hoje Consea –, ao lado de intelectuais brilhantes e igualmente saudosos: Miguel Reale, Olavo Setubal, Aluizio Rebello de Araújo, Aureliano Chaves, Jarbas Passarinho, Otto Cyrillo Lehman, Roberto Gusmão, Walter Fontoura e outros que ainda convivem e igualmente produzem obras de valor.
Em setembro de 1995 Oliveiros S. Ferreira relatou o tema “O futuro da Federação”. Abordou aspecto pouco explorado: a relação entre União e Estados. Para o saudoso mestre, esse problema tem íntima relação com o desenvolvimento desigual do País, que ele considerava uma variante simplificada da chamada tensão centralismo/localismo, presente desde a descoberta do Brasil.
Oliveiros avança na análise das possíveis e polêmicas consequências que poderiam decorrer do processo de encaminhamento das propostas para o futuro da Federação. Questão que continuava e continua na pauta das reformas necessárias para pôr o País no caminho do desenvolvimento econômico e social.
“Hoje”, afirmou no estudo apresentado, “ele começa a adquirir contornos mais nítidos, em grande medida devidos à crise do Estado, que é algo mais que o somatório da crise dos Estados federados e a da União. Crise essa que podemos dizer, sem sombra de dúvida, uma crise fiscal, ou de caixa, se quisermos, mas que tem características mais profundas. ”
Oliveiros salientou que o importante tema só pode ser discutido se atentarmos para fato a que se tem dado pouca atenção: a União só existe porque há uma Federação – “com o perdão da obviedade”. O que significa que se por ventura a Federação entrar em crise, isto é, se houver uma ruptura no laço que mantém unidos os diferentes Estados desde a proclamação da Independência, a União entrará em crise – como, talvez profeticamente, já disse o senador José Sarney ao se pronunciar sobre uma das reformas propostas pelo presidente Fernando Henrique Cardoso.
É preciso ter presente, ao mesmo tempo, que a questão da relação entre a União e os Estados guarda íntima relação com o problema do desenvolvimento desigual do País, aquilo que poderíamos chamar de desenvolvimento regionalizado e, no fundo, nos levaria a examinar as queixas que se fazem no Norte-Nordeste ao imperialismo paulista e ao montante das transferências feitas ao Sul-Sudeste, por um lado, e, por outro lado, no Sul-Sudeste ao Norte-Nordeste por motivos semelhantes. A questão tende a se complicar pela inserção do Brasil no Mercosul e também pela pressão que os ambientalistas do mundo inteiro exercem sobre o governo federal, obrigando-o a tomar providências que afetam alguns Estados. “Desgraçadamente, os Estados afetados são aqueles de menor desenvolvimento, o que aumenta seu sentimento de desamparo e permite que se suscite, com intensidade cada vez maior, a questão de sua pertença à Federação brasileira. ”
Oliveiros ponderou que deveríamos ter como referência as observações de Ortega: “Os particularismos surgem quando o centro não tem mais missão a dar às partes que integram um todo”. E lembrou que no Brasil a tensão centralismo/localismo deixou de ser estudada, tendo-se convertido no exame das desigualdades regionais.
A partir de 1945 tentou-se conciliar as exigências do Estado brasileiro (centralismo) com as dos Estados federados (localismo). Essas duas forças brigaram até 1964, quando o centralismo novamente se impôs. Em 1988 foi a revanche dos localismos que impôs sua vontade à União e, sobretudo pelos poderes conferidos ao Senado, frustrou qualquer possibilidade de o poder central ter uma política própria. Apesar dessa limitação, foram os códigos que mantiveram os Estados ao centro, especialmente os Códigos de Processo e Tributário.
Se no passado a tensão era em torno da autonomia das províncias, em 1968 a raiz das tensões migrou para o poder de tributar. A centralização do poder de tributar que a União começou a chamar a si a partir de 1968 – deixando, em tese, aos Estados federados o direito de se engalfinharem num jogo em que bastava o voto de um para que nada se fizesse.
A grande crise, como advertiu Oliveiros, não pode ser vista isoladamente. Deve ser encarada à luz da crise maior que é a do Estado em sentido amplo, que é a da União e a dos Estados federados. A crise dos Estados é até maior que a da União, pois neles se dá a conjunção das crises de caixa, do sistema político e do sistema partidário. A relação entre a crise do sistema partidário e a crise dos Estados é simples: o governo cessante nomeia funcionários e contrata obras para tentar eleger seu sucessor, sem se preocupar com quem vai pagar a conta, mesmo que seja seu candidato o eleito.
Oliveiros lembrou também que o fato de a folha consumir enorme porcentagem das receitas do ICMS – e em alguns casos, mais as transferências da União – não é novo.
Outro ponto lembrado foi o de saber se a crise não é também de natureza cultural, no sentido antropológico amplo. “A crise dos Estados de repente é o tumor que supura, tornando expressa a consciência da diversidade cultural que poderia, no limite, separar as diferentes regiões que compõem o subcontinente. Essa ideia que se passa a ter da diversidade cultural poderia traduzir-se assim: de repente, amplos setores intelectuais, talvez numericamente menos os setores produtivos, sentem-se diferentes e pode-se observar que há quem pretenda separar-se dos demais Estados por se sentir diferente. ”
Como é importante recordar lições dos mestres, como o inesquecível Oliveiros S. Ferreira.