Advirta-se, desde logo, que a tão falada  insegurança jurídica em matéria tributária não reside no Sistema Tributário Nacional Kiyoshi Harada 2 0e052esculpido com maestria pelo legislador constituinte original no Capítulo I, do Título VI da Constituição Federal, entregando-o pronto e acabado, nada deixando à eventual colaboração de legislador infraconstitucional para acrescer ou alterar.  Por isso, sempre ponderamos que não expressa a realidade a costumeira invocação da Reforma Tributária para simplificar o Sistema e diminuir o custo do cumprimento das obrigações tributárias.           

            Na prática,  o nosso Sistema Tributário, estruturado de forma segura na Constituição, tornou-se um dos mais inseguros do mundo, tendo em vista legislação ordinária que se desenvolve com impressionante dinamismo caótico, não respeitando as normas e os princípios constitucionais expressos ou implícitos. A impressão que se tem é que estamos convivendo com o princípio da ilegalidade ou da inconstitucionalidade eficaz.

            Qual o conteúdo e o alcance da segurança jurídica em matéria tributária?

            O princípio da segurança jurídica costuma ser ancorado no caput do art. 5º da Constituição Federal que assegura, entre outras coisas, o direito à segurança que indubitavelmente abrange a segurança física e a segurança jurídica. Preferimos ancorá-lo no art. 1º da CF:

“Art. 1º A República Federativa do Brasil, formada pela união indissolúvel dos Estados e Municípios e do Distrito Federal, constitui em Estado Democrático de Direito e tem como fundamentos:

I - a soberania;

II - a cidadania;

III - a dignidade da pessoa humana;

IV - os valores sociais do trabalho e da livre iniciativa;

V - o pluralismo político.

Parágrafo único. Todo o poder emana do povo, que o exerce por meio de representantes eleitos ou diretamente, nos termos desta Constituição.”

            Efetivamente, não se pode cogitar de Estado Democrático de Direito sem que haja segurança jurídica que decorre do governo de leis, e não do governo de homens, cuja vontade, ao contrário da vontade objetiva da lei, varia no tempo e no espaço e de acordo com as circunstâncias de cada caso concreto. Apenas e tão somente as leis elaboradas pelos legítimos representantes do povo têm o condão de conferir segurança jurídica. Contudo, não se trata de legalidade meramente formal, mas daquela legalidade conformada com os textos constitucionais. Outrossim, não bastam leis conformadas com a Constituição, pois elas não são auto-operativas. Alguém precisa aplicá-las. O Executivo, quando as aplica o faz no interesse próprio, interpretando-as de forma distorcida e parcial, principalmente quando se trata de cobrar tributos. Outras vezes viola o princípio da proteção da confiança ao descumprir a lei que o próprio Estado elaborou. Quem age de conformidade com a lei o faz no pressuposto de que o Estado que produziu a lei a cumpra. Do contrário, de nada adiantaria o disposto no inciso II, do art. 5º da CF segundo o qual ninguém é obrigado a fazer ou deixar de fazer alguma coisa senão em virtude de lei.

O conceito de segurança jurídica está intimamente ligado àquele princípio da estrita legalidade, esculpido no inciso I, do art. 150 da Constituição Federal, não comportando  qualquer tipo de flexibilização, porque é exatamente o princípio que permite a previsibilidade do que o poder político do Estado pode fazer e não pode fazer.

            O princípio da segurança jurídica na seara do Direito Tributário em um Estado Democrático de Direito assume a feição de um verdadeiro pressuposto do direito, caracterizado pela existência de um sistema jurídico regular do ponto de vista estrutural e funcional. De um lado, requer  a elaboração de normas jurídico-tributárias estáveis, claras e objetivas conformadas com os textos constitucionais. Se as leis mudam com frequência, não para reger situações futuras, mas para atingir o passado, o Estado estará afrontando o princípio da proteção da confiança que igualmente decorre do citado art. 1º da Constituição. O princípio da segurança jurídica que decorre da lei estável, sem o respeito ao princípio da proteção da confiança, cairá no vazio. Será um princípio inútil. De outro lado, esse princípio pressupõe existência de um Poder Judiciário para fazer cumprir com celeridade e de forma contínua aquelas normas jurídicas conformadas com os textos constitucionais, e rejeitar em tempo razoável as normas não conformadas com os princípios tributários. São os aspectos,  objetivo e subjetivo da segurança jurídica.

            A segurança jurídica em matéria tributária vista sobre o prisma substancial é uma das piores do mundo. Continuamente são despejadas de leis nas três esferas políticas, aonde prevalece a feitura de normas dúbias, complexas e lacunosas que se prestam a toda sorte de interpretações. Esse quadro é agravado pela complementação por meio de decretos regulamentadores que, na maioria das vezes, inovam as disposições legais. O que é pior, os Decretos, por sua vez,  quase sempre delegam a feitura de detalhes por normas complementares – instruções normativas, pareceres, portarias, atos declaratórios interpretativos etc. – que não obedecem a hierarquia vertical das leis. Resulta disso todo  um cipoal de normas confusas, dúbias e contraditórias compondo o Sistema Tributário caracterizado por um dinamismo caótico, onde ninguém tem a necessária segurança jurídica. A burocracia infernal a que são submetidos diuturnamente os contribuintes constitui uma matéria prima para a expansão da corrupção do âmbito da administração. No dizer de Héctor Mairal, que  escreveu sobre “As raízes legais da corrupção”, o direito público ao invés de combater a corrupção  vem fomentando-a.  O outro aspecto da segurança jurídica diz respeito à correta e célere aplicação da lei pelo Poder Judiciário que detém o monopólio estatal da jurisdição. Isso, também, não vem acontecendo, em parte, como decorrência da morosidade causada pela massificação de processos envolvendo questões tributárias que representam 60% dos processos em curso nos tribunais, agravada pelo dinamismo caótico da legislação que confunde os julgadores, abrindo o caminho para a crescente jurisprudência defensiva; de outra parte, como resultado da perda do princípio da colegialidade de alguns anos para cá, em que cada julgador, às vezes, decide de conformidade com as suas convicções pessoais formadas à luz de considerações de natureza extrajurídica, como as questões da moralidade, da escassez de recursos financeiros do Estado, noções de justiça etc. Não cabe ao juiz substituir-se no critério de justiça adotado pelo legislador, sob pena de gerar total instabilidade na jurisprudência com a conseqüente insegurança jurídica.

            Estas são, em apertada síntese, as causas da insegurança jurídica em matéria tributária. Como restabelecê-la?

O princípio da legalidade que permite a previsibilidade da ação do poder político do Estado depende da observância do princípio da proteção da confiança que se assenta no princípio da boa-fé objetiva do Estado de aplicar efetivamente a lei que elaborou. Os princípios da segurança jurídica,  da proteção da confiança e da boa fé objetiva são corolários do princípio da legalidade e estão todos eles abrigados no art. 1º da Constituição Federal que consagra o Estado Democrático de Direito como elemento constitutivo da Federação Brasileira. Sem a imbricação desses três princípios, o da boa fé objetiva, o da proteção da confiança e o da segurança jurídica, o princípio da estrita  legalidade tributária de nada adiantará. A  elaboração de leis claras e objetivas, justas e sábias de nada valerá se elas não forem aplicadas, ou se forem aplicadas de forma divorciada da vontade objetiva das leis.

Enquanto não enfrentadas e solucionadas essas questões enfocadas neste artigo – dinamismo caótico da legislação tributária, respeito ao princípio da proteção da confiança, estabilidade da jurisprudência dos Tribunais Superiores – de nada adiantará a pretendida Reforma Tributária, como a que está em discussão no Parlamento Nacional, pois a complexidade e o elevado custo operacional do Sistema Tributário Nacional não reside e nunca residiu na Constituição Federal.

 A proposta em discussão (PEC nº 293-A/04) apresentada sob a equivocada  bandeira da simplificação do Sistema Tributário mediante junção de impostos federais, estaduais e municipais, se aprovada, trará, com certeza, inúmeras incertezas mexendo e remexendo em conceitos já pacificados às duras penas pelos Tribunais, além de acarretar aumento tributário na contramão do discurso governamental, pois a União passará a ter o oitavo imposto seletivo, incidente sobre operações rendosas e de fácil arrecadação, e o Estado passará a deter competência para arrecadara o quarto imposto, o imposto sobre operações com bens e serviços a ser instituído pela União, que certamente consumirá décadas para fixar o seu exato significado. Operações de bens e serviços expressa um conceito em aberto que tem por limite o céu. Vejam que não se tratam de operações sobre circulação de bens e serviços. E mais, tanto o novo imposto federal (imposto seletivo), como o novo imposto estadual resultante da fusão de impostos federais, e de impostos, estadual (ICMS) e municipal (ISS), serão arrecadados simultaneamente com os atuais impostos vigentes até que se opere a substituição definitiva ao cabo do 15º exercício, a partir do exercício da promulgação da Emenda. Vale dizer, além de implicar aumento de carga tributária às dificuldades geradas pelos treze impostos em vigor serão somadas aquelas provenientes do novo imposto de base expandida e ilimitada. É um tremendo engano supor que a redução da quantidade de impostos irá simplificar o Sistema Tributário. Bastará um único tributo do tipo PIS-COFINS para tornar o Sistema complexo, dúbio, nebuloso e inseguro por conta do impressionante dinamismo caótico da legislação pertinente. Por fim, a proposta sob exame traz para o bojo da Constituição os defeitos da legislação ordinária, incorporando normas casuísticas que não se revestem de natureza constitucional, tornando o Sistema Tributário tão complexo e confuso quanto à legislação infraconstitucional.

Por isso, o razoável seria efetuar emendas pontuais nos termos das sugestões por nós oferecidas na Comissão Especial de Reforma Tributária em 2008 para explicitar princípios tributários implícitos, visando diminuir as controvérsias jurídicas, bem como prevenir decisões tangenciais. Essas propostas simples e de fácil compreensão, em número de nove, estão reproduzidas no nosso livro Direito financeiro e tributário, 28ª ed. São Paulo: Atlas, 2019, p. 903-908.

SP, 3-4-19.