Fonte: CONJUR 20/05/2025

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Debate-se nas esferas político-financeiras do governo federal se o montante a ser pago de precatórios em 2027 deve ou não compor o limite de despesas a serem consideradas para fins do arcabouço fiscal (Lei Complementar 200/23).

Faço logo o spoiler: o montante de precatórios a serem pagos, em 2027 ou em qualquer outro ano, não deve compor a base de despesas para fins do arcabouço.

Justifico a conclusão já exposta. O arcabouço fiscal visa controlar as despesas públicas, porém existem despesas que são controladas pelo Poder Executivo e outras que não são. Dois exemplos demonstram esse fato.

O montante a ser pago em razão do serviço da dívida pública não é controlado pelo Poder Executivo, até mesmo porque a taxa de juros é determinada pelo Banco Central, que é autônomo inclusive para essa função, e esse valor não pode ser reduzido ou contingenciado pelo Executivo. Corretamente esse montante não é computado para fins do arcabouço fiscal.

Da mesma forma, o montante a ser pago de precatórios não é uma despesa que possa ser controlada pelo Poder Executivo, pois sua quantificação e determinação é são efetuadas pelo Poder Judiciário, fruto de milhares de ações que tramitaram em suas Varas durante décadas e, finalmente, transitaram em julgado, formando coisa julgada contra o Tesouro Nacional.

Nem mesmo ao Poder Legislativo é autorizado modificar o valor que o Poder Judiciário remete para inserção na Lei Orçamentária Anual  — a quantia que tiver sido estabelecida pelo Judiciário deve ser inserida pelo Poder Legislativo na LOA sem nenhuma alteração. Sequer pode haver veto do Poder Executivo referente a essa rubrica ao sancionar a LOA. Tal qual referente ao serviço da dívida pública, o montante de precatórios não pode ser reduzido ou contingenciado pelo Poder Executivo.

Nestes casos o Poder Executivo encontra-se de mãos atadas, nada podendo fazer para reduzir a despesa. O montante do serviço da dívida pública não é computado para fins dos limites de despesas do arcabouço fiscal, porém o montante a ser pago de precatórios é computado para fins do arcabouço. Qual a razão do tratamento desigual? Nenhuma.

No caso da dívida pública os credores estão comprando títulos emitidos pelo Tesouro, representativos da dívida pública no mercado. São credores do Tesouro Nacional aquelas pessoas que possuem em sua carteira LTNs ou qualquer outro dos títulos ofertados pela União (conferir no site do Tesouro Direto).

No caso dos precatórios, os credores são os sofridos litigantes que durante décadas disputaram em juízo contra o poder público e venceram a demanda perante o Poder Judiciário, em suas múltiplas instâncias, tornando-se credores do Tesouro Nacional por meio de um título específico denominado precatório, que é uma decisão judicial transitada em julgado – algo que o sistema jurídico considera seguríssimo.

Os credores dos precatórios são tão credores quanto aqueles que possuem títulos públicos emitidos pelo Tesouro Nacional. O devedor é o mesmo. Por qual motivo a dívida pública representada por títulos emitidos pelo Tesouro Nacional deve ter um tratamento diferente daquela que é emitida pelo Poder Judiciário contra o Tesouro Nacional? A resposta é: não há razão para discriminação. O Tesouro Nacional deve pagar a todos os credores de forma igual.

Não se trata de falta de dinheiro para pagar a uns e não pagar a outros. Não é esse o ponto – dívidas devem ser honradas e há dinheiro para pagar a todos esses credores, sendo que a dívida financeira é milhares de vezes superior que a dívida judicial.

Ocorre que o tratamento contábil é distinto no âmbito do arcabouço fiscal, pois ficam fora da limitação de despesas os credores financeiros (dos títulos emitidos pelo Tesouro), e ficam dentro dessa limitação de despesas os credores judiciais (dos títulos emitidos pelo Poder Judiciário contra o Tesouro = precatórios). Não há razão para esse tratamento distinto, o que justifica a conclusão exposta no spoiler, de que o montante de precatórios a serem pagos, em 2027 ou em qualquer outro ano, não deve compor a base de despesas para fins do arcabouço.

Relembre-se que em dezembro de 2023 o STF, por meio da ADI 7.064, relatada pelo ministro Luiz Fux, declarou formalmente inconstitucional parte das Emendas Constitucionais 113 e 114, que criavam o efeito bola de neve no pagamento de precatórios, o que era perverso (um resumo das discussões pode ser lido aqui). A decisão do STF desarmou parcialmente a bomba relógio  pois foi afastada a limitação orçamentária até 2026, o que fará retornar o problema em 2027. O problema foi adiado e não resolvido em definitivo.

O nó é conceitual, pois foi afirmado pelo STF (item 19 da ementa do acórdão da ADI 7.064) que “A dívida pública em matéria de Direito Financeiro, é sempre decorrente ou (i) de empréstimos realizados pelo ente público ou (ii) da emissão de títulos. As dívidas decorrentes do pagamento de condenações judiciais não são classificadas como dívida pública, mas como despesas”.

O problema está nesse ponto, pois precatórios não são despesas, são dívidas, como consta da última frase do próprio texto, que ora grifado: “As dívidas decorrentes do pagamento de condenações judiciais não são classificadas como dívida pública, mas como despesas”.

Isso decorre de uma interpretação imprecisa do artigo 30, §7º da Lei de Responsabilidade Fiscal (LRF), que estabelece: “Os precatórios judiciais não pagos durante a execução do orçamento em que houverem sido incluídos integram a dívida consolidada, para fins de aplicação dos limites”.

A expressão-chave para o entendimento do artigo 30, §7º da LRF é dívida “consolidada”, não havendo referência na norma de que precatórios são despesas. O contraponto à expressão dívida consolidada é dívida flutuante, prevista no artigo 92 da Lei 4.320/64, que inclui no inciso II “os serviços da dívida a pagar”.

Os precatórios que devem ser pagos no exercício corrente são dívida flutuante (Lei 4.320/64, artigo 92, II) e os precatórios que não foram pagos no exercício corrente se constituirão como dívida consolidada (LRF, artigo 30, §7º). Em nenhum momento consta que precatórios são despesas; precatórios são dívidas, ora consideradas como flutuantes (caso sejam pagas no exercício corrente), ora consideradas como consolidadas caso não tenham sido pagas no exercício corrente, mas acumuladas para pagamento nos exercícios posteriores.

A confusão ocorre em razão de uma distinção entre a análise jurídica (que busca a essência dos atos/fatos, comumente denominada de natureza jurídica) e a análise contábil (que busca evidenciar a execução orçamentária e financeira do ente público).  Juridicamente os precatórios a serem pagos no exercício corrente tem a natureza jurídica de dívida flutuante, porém, contabilmente, para fins de execução orçamentária, seu pagamento quita uma despesa realizada no exercício corrente.

Em síntese: o pagamento dos precatórios no exercício corrente quita contabilmente uma despesa, caracterizada juridicamente como uma dívida flutuante.

Na leitura do item 19 da ementa do acórdão da ADI 7.064 deveria constar um parêntesis, que ora aponho: “As dívidas decorrentes do pagamento de condenações judiciais não são classificadas (contabilmente) como dívida pública, mas como despesas”. A partir daí seria necessário distinguir a análise jurídica da contábil, ambas corretas, mas com diferentes abordagens, devendo prevalecer o Direito no julgamento dessa matéria, pois trata da essência dos atos ou fatos jurídicos.

É necessário colocar um ponto final nesse debate em prol da segurança jurídica no país, incluindo a dos credores, sejam os do mercado financeiro, sejam os judiciais, pois isso impacta no risco-país e, consequentemente, na taxa de juros e em toda a economia.